Brisa salgada, Sol reluzente e o opressivo
bafo de Lúcifer
Depois de uma noite
sossegada onde só a respiração da natureza foi ouvida (relembro que pernoitei
num pequeno parque de campismo privativo a poucos metros do recinto), acordei
com os primeiros raios solares da manhã. O dia começava a aquecer e desvanecia
o orvalho trazido pelo oceano. No exterior da minha tenda governava ainda uma
bucólica tranquilidade que servia de travesseiro aos poucos festivaleiros que
ali dormiam. Desafoguei a cabeça sonolenta de dentro da tenda e inalei a fresca
e revitalizante brisa de aroma marítimo que se passeava por ali. O meu olhar
ganhou vivacidade e isso serviu de motivação para passar o resto da manhã num
bar junto à praia e de seguida almoçar calmamente num restaurante localizado
numa das principais artérias interiores da povoação. Aquele conforto
absorveu-me e relaxou-me de tal forma que optei por permanecer naquela zona de
Moledo durante mais algumas horas, regressando ao recinto secundário do
festival já a meio da tarde. No recinto da piscina imperava uma ambiência
harmoniosa generalizada. O Sol exalava uma intensa radiação e bronzeava os
muitos corpos que de cerveja empunhada, cabeças baloiçantes e olhar ancorado no
palco vivenciavam as primeiras iguarias sonoras servidas naquele segundo e
derradeiro dia de SonicBlast. Desta
tarde na piscina aguardava com gigantescas expectativas e ansiedade a chegada
do tridente nórdico Purple Hill Witch
com o seu nervo, compasso e negrume de clara descendência Black Sabbath’ica. Assim que a banda de origem norueguesa
empunhou os instrumentos e ligou os amplificadores não demorou a brindar com
uma possante, ruidosa e instigante avalanche sonora toda a numerosa e
tumultuosa plateia que – saturada de um impaciente entusiasmo – vibrava nas mais
próximas imediações em frente do palco. Sustentados num obscuro, majestoso,
robusto e poderoso Proto-Metal de
rotação setentista que tanto nos
sepulta a alma no solo como a dispara na alucinante direcção do Cosmos, os Purple Hill Witch dominaram e
entusiasmaram toda a audiência sedenta de algo assim. E foi à boleia dos seus
influentes riffs sobrecarregados de
uma tirânica, morfínica e lamacenta obscuridade que todos nós inalámos aquela
fumarenta e psicotrópica reverberação de tonalidade esverdeada. Em frente ao
palco os corpos debatiam-se como podiam perante tal descarga de feições diabólicas
e monolíticas, e embatiam entre si numa intensa e prazerosa comoção sem travões
à vista. A guitarra luciférica ostentava-se em delirantes, vertiginosos e
dilacerantes solos, e agigantava-se em intrigantes acordes que tanto se
enegreciam, robusteciam e retardavam, como se intensificavam, enfureciam e aceleravam.
O baixo movia-se a linhas pulsantes, vigorosas, torneadas e pujantes que
mareavam e tonificavam o riff base, a
bateria flamejante explodia a uma ritmicidade galopante e excitante, e os
vocais avinagrados, ecoantes e ácidos assombravam toda a arrepiante, enigmática
e horripilante atmosfera superiormente criada pelos druidas Purple Hill Witch. Provavelmente os
responsáveis pela performance mais impactante assistida naquele palco.
Hipnotismo, cavalaria pesada e a ardência
californiana
Avizinhava-se
um final de tarde, início de noite e noite de grande emoção. O jovem power-trio helénico Naxatras estreava o palco principal daquele segundo dia de SonicBlast e a plateia consolidava-se
ao longo de todo o recinto. Sentia-se toda uma grande expectativa generalizada
apontada à actuação da formação mediterrânica, mas a verdade é que os mesmos se
exibiram a um nível de tal forma arrebatador ao qual ninguém esperava e
tampouco estava preparado. A sua sonoridade magnetizante, exótica e
entusiasmante – saturada de um edénico misticismo astral – obrigou toda a
massiva e absorta audiência a dança-la de forma detida, extravagante e
despreocupada. Testemunhava-se uma encantadora simbiose entre a banda e o
público que nunca esmoreceu ao longo da performance. Um autêntico oásis onde a
nossa alma se banhara e deleitara do primeiro ao último minuto. As pessoas – de
olhar extasiado, sorriso inabalável e alma fascinada – serpenteavam de forma
sedutora e comprometida os seus corpos na instintiva resposta comportamental às
contagiantes vibrações desprendidas por uma guitarra endeusada de riffs meditativos, inventivos e de uma sagrada envolvência nirvânica, um baixo groovy
soberbamente conduzido a linhas pulsantes, dinâmicas, robustas e hipnotizantes,
uma bateria absorvente de ritmicidade inquietante, compenetrada e excitante, e
ainda uma voz ecoante e liderante que nos norteava nesta messiânica
peregrinação pelos distensíveis desertos da nossa espiritualidade. Naxatras revelou tratar-se de uma
sagrada e purificante transcendência rumo à intimidade do transe. Uma performance verdadeiramente imaculada de uma das bandas
mais queridas e proeminentes do Psychedelic
Rock moderno. Não foi nada fácil despertar e emergir das profundezas
oníricas em que os gregos nos mergulharam. Um dos concertos mais tântricos e prazerosos
desta 8ª edição do SonicBlast teve a
assinatura destes gregos.
Tal como já havia sucedido
com Nebula, os fiéis discípulos do SonicBlast Moledo tinham agora a oportunidade de (re)ver mais uma formação
histórica da tão afamada Desert Scene.
De raízes nascidas no início da década de 90 em Nova Jersey (EUA), os
explosivos The Atomic Bitchwax
estavam de regresso ao mesmo palco pisado em 2014 e deles esperava-se uma
alucinante e furiosa viagem pelas poeirentas estradas de um deserto dessecado
pelo Sol vigilante. E verdade seja dita que assim os primeiros riffs foram ouvidos e reconhecidos,
todos nós nos embebedámos de uma redentora adrenalina. Orientados por um
desenfreado, provocante e musculado Stoner
Rock aureolado por uma forte radiação psicotrópica, este trio ofensivo
motivara os primeiros headbangings do
palco principal. A sua sonoridade portentosa equilibra-se por entre a robustez,
a intensidade, a leveza e a flexibilidade numa cativante conjugação de forças
que nos mantém a ela atrelada do primeiro ao derradeiro tema. E assim foi, os TAB aceleraram a uma só velocidade e
regaram-nos de epinefrina via auditiva. O público cerrava os maxilares, carregava
o olhar e desprendia a cabeça à vertiginosa boleia de uma fogosa guitarra que
se manifestava em vigorosos, dinâmicos e ostentosos acordes, enegrecidos e
fortalecidos por um baixo encorpado e torneado, agredidos por uma bateria
exuberante e impetuosa, e ainda acicatados por uma voz escarpada, enérgica e
abrasada que incendiava e liderava toda esta frenética viagem. TAB ao vivo foi um indomável e raivoso muscle car que nos atropelara e
afogueara sem a mais pequena réstia de timidez. No final fizeram por merecer um
emotivo e prolongado aplauso que se estendera até ao momento em que trio
norte-americano voltou costas ao público e abandonou o palco.
Depois ter ido jantar na companhia sonora de 1000mods, estava de regresso ao recinto para assistir ao concerto
de uma das minhas bandas favoritas: Kadavar.
Este impactante power-trio germânico
subia a um palco onde em 2013 congratularam todos os presentes com a melhor
performance dessa edição (aos meus ouvidos, é claro). Fundamentados numa
imponente e destravada cavalgada que assola tudo e todos à sua frente, os Kadavar arrancaram para um concerto que
não deixara ninguém indiferente. Hasteando um possante, expressivo, altivo e
veemente Heavy Rock de tração setentista, estes quatro cavaleiros de
instrumentos empunhados instigaram e nutriram uma das mais intensas comoções
persentidas fora do palco. Na audiência vivia-se todo um revoltoso mar onde
corpos naufragavam à superfície (CrowdSurf)
e o clima era de uma plena e redentora euforia transversal a todos aqueles a
quem a volumosa reverberação de Kadavar
alcançava. Numa setlist bastante
diversificada – percorrendo todos os seus registos discográficos – foi na
execução de temas mais clássicos como “Doomsday Machine”, “All Our
Thoughts”, “Living In Your Head” e “Come Back Life” que a formação
germânica sentira maior entusiasmo transpirado da plateia. Vivenciava-se um
perfeito clima de total exaltação sustentada por uma guitarra suprema que se
amuralhava em riffs resistentes,
obscuros, sólidos e intrigantes, e se excedia em solos verdadeiramente
atordoantes, convulsivos, desvairados e mirabolantes, um potente baixo de bafo
vigoroso, tenso, dinâmico e monstruoso, uma bateria espalhafatosa e cavalgante de
acrobacias circenses, inflamantes, talentosas e retumbantes, e ainda uma voz gélida
e destemperada que nos afligia e arrepiava. No final estávamos todos ainda
demasiado abalados com toda aquela colossal avalanche decibélica que nos havia
devastado sem qualquer moderação. Kadavar
ao vivo foi uma violenta detonação de adrenalina que nos inquietara e
euforizara do primeiro ao último minuto. Foi demasiado fácil entrar em erupção
ao som de uma das actuações mais marcantes da presente edição do SonicBlast.
Aproximava-se o momento pelo qual tantos e tantos esperavam com crescente inquietação:
Earthless. Tal como acontecera com Causa Sui, já não experienciava Earthless ao vivo desde o verão
espanhol de 2009, e, portanto, transbordava de impaciência. Estes três titãs do
Heavy Psych californiano marcava
pela primeira vez presença num festival que desde o seu começo suspirava por
eles. Na plateia os corações rufavam de ansiedade e todos os olhares agarravam
o palco com firmeza. E foi debaixo de um aplauso ensurdecedor que a tão
carismática banda natural de San Diego
subiu a palco. “Uluru Rock” dava assim início a uma das performances mais
explosivas e arrebatadoras da história do SonicBlast.
O público ardia num intenso entusiasmo, e de olhar desfalecido, semblante caído
e oscilante embalava numa profunda e absorvente hipnose. E foi de instrumentos
apontados aos seus dois últimos álbuns (‘From the Ages’ e o recém-nascido ‘Black
Heaven’) que este assombroso e electrizante power-trio californiano nos envolveu, extasiou e disparou na vertiginosa
direcção dos mais distantes e solitários astros do Cosmos narcotizante. Uma
estonteante e incrível odisseia que nos embacia e exorciza a lucidez e nos
atesta a alma de prazer. Estávamos todos aprisionados a este impetuoso vórtice
que rodopiava e engolia tudo à sua volta. Era impossível demover o olhar e os
ouvidos do guitarrista/vocalista Isaiah
Mitchell que nos presenteava com veneráveis riffs conduzidos a flexibilidade, sentimento, destreza e lubricidade,
superava-se e esgotava-se em estupendos solos que nos inflamavam e extenuavam
só de os ouvir e diligenciar, e afagava-nos com a sua voz melosa, relaxante,
limpa e harmoniosa. Testemunhava-se uma enlouquecedora masturbação da guitarra,
desprendendo todas as conjugações possíveis de notas e provocando em nós toda
uma implosão consciencial. O espantoso baterista Mario Rubalcaba de baquetas firmemente empunhadas manifestava-se
numa selvática performance de propensão ofensiva, ateando e esporeando toda a vulcânica
sonoridade de Earthless com a sua magnetizante,
redentora, despachada e empolgante ritmicidade, enquanto que o recatado Mike Eginton dirigia o seu baixo com
base em linhas pulsantes, robustas, flexíveis e serpenteantes nunca perdendo o riff-base de vista. Estávamos mesmo na
presença de três músicos fabulosos que se conhecem e completam como poucos. Uma
perfeita simbiose que nos manteve a eles atrelados do primeiro ao último tema.
Depois de pouco mais de uma hora de actuação, a banda elevou os instrumentos
aos céus e teve de enfrentar toda uma audiência ruidosa que não se conformava
com o término do concerto. Os amplificadores deixados ligados sugeriam um encore e assim aconteceu. Para gáudio de
todos nós, os Earthless regressavam
ao altar para que os pudéssemos adorara durante mais algum tempo. Com a
reprodução de mais três temas, entre os quais o já fetiche “Cherry Red” (repescada
aos clássicos britânicos The Groundhogs)
e a surpreendente interpretação de “Communication
Breakdown” (solicitada aos célebres Led
zeppelin) a dar como finalizada toda aquela sónica efervescência em que todos
nós mergulhámos e da qual não mais regressamos à superfície.
No final estava já bastante combalido e as minhas pernas sugeriam que reaprendesse a caminhar. Foi já com a negra alquimia dos portugueses The Black Wizards – superiormente posta em prática no palco principal – que regressei ao conforto da tenda. TBW pareciam representar o epílogo perfeito para dar como terminada esta 8ª edição do SonicBlast, emoldurados por uma densa mancha humana que parecia não querer arredar pé do recinto. Já é tradição (meritória, entenda-se) assumir o crescendo qualitativo deste festival à beira mar plantado, e por isso não tenho a mais pequena reserva em admitir que esta foi a minha edição favorita. Um line-up extraordinário aliado a um ambiente tremendamente especial fazem desta edição, uma edição da qual é impossível regressar. Que comece a contagem decrescente para a próxima peregrinação a Moledo, pois é lá onde esta imensa minoria se sente verdadeiramente feliz.
*Fotografias da
autoria de Miguel Raimundo
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