sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Review: 🌊 SonicBlast Fest 2023 🌊


O mês de agosto representa o pináculo do indelével entusiasmo que se renova todos os anos e dilata com o aproximar da tão consagrada romaria anual ao meu festival de eleição: o SonicBlast. Foi já no longínquo verão de 2012 que me estreei no festival minhoto – à beira-mar plantado – e desde então não mais falhei uma única edição. É também com um sentimento de admiração que olho em retrospetiva para o histórico do SonicBlast e vislumbro todo um sustentado processo evolutivo que faz com que hoje o festival seja levado tão além-fronteiras (alcançando todo o continente europeu e atravessando oceanos) e se firma como uma mais das importantes referências mundiais (a inumerável pluralidade de nacionalidades presentes no evento é prova disso mesmo) dentro dos cada vez mais diversos géneros e sub-géneros musicais que sobem a palco. São já incontáveis os concertos de uma vida que experienciara em 10 edições do festival, e a 11ª prometia colocar mais uns quantos no meu baú das memórias que nem o esquecimento se esquece de as recordar. O banquete musical que nos fora apresentado pelo conceituado chef Garboyl Lives continha deliciosas iguarias que mal podia esperar para degustar algumas pela primeiríssima vez como Hällas, Kanaan, LOVE GANG, Monarch, Mythic Sunship, Crippled Black Phoenix e The Black Angels, e outras que tanto prazer me daria reencontrar como Bombino, Earthless, Acid King, Church of Misery e Deathchant. E foi à volta destas referências que gravitei durante esta inesquecível XI edição do SonicBlast, e que – sem mais demoras – passarei a traduzir para o universo da escrita tudo aquilo que a sua música me fizera sentir. 


Dia 1 // Mythic Sunship

Foi debaixo de um imenso céu azul turquesa e de um radioso Sol de bafo impiedoso que os dinamarqueses Mythic Sunship subiram ao palco para finalmente concretizarem o seu tão aguardado concerto (que parecia estar irremediavelmente amaldiçoado, ou não fossem os sucessivos cancelamentos em edições anteriores). A viagem à boleia do exótico colectivo nórdico estava calendarizada para o final da tarde, mas o atraso do voo onde seguiam os californianos Death Valley Girls fez com que as duas bandas trocassem os horários das respectivas actuações, posicionando o colectivo natural de Copenhaga na inauguração do palco 1. E foi a trote do seu musculado, serpenteante, psicotrópico e autoproclamado Anaconda Rock (resultante da fusão entre um pastoral, contemplativo, imaginativo e ambiental Psychedelic Rock, e um viajante, fogoso, venenoso e deslumbrante Space Rock), que a crescente plateia vivenciara – de pálpebras rebaixadas e cabeças baloiçadas de ombro a ombro – toda uma alucinógena expedição na vertiginosa direcção dos mais longínquos astros que se vão desenraizando e revelando pelos desdobráveis firmamentos cósmicos. Enlaçados pela sonoridade integralmente instrumental do colectivo escandinavo, velejamos os mares do psicadelismo astral ao sabor de duas guitarras que se engrossavam na condução de ziguezagueantes e luzidios riffs e se cruzavam na principesca caligrafia de intrincados e escorregadios solos, um baixo soberbamente bamboleante e uma bateria de galope contido. Não consigo esconder a desilusão pela ausência do (in)disciplinado saxofone que confere toda uma libertadora, extravagante e sedutora aura Avant-Garde Jazz ao psicadelismo sideral da banda. Ainda assim, os Mythic Sunship revelaram-se um agradável refresco musical para principiar aquela quente tarde em frente ao palco principal.


Dia 1 // Crippled Black Phoenix

Conheci os sui generis Crippled Black Phoenix há sensivelmente 15 anos, mas fui perdendo o rasto da banda britânica (não por culpa da banda – até porque nunca deixei de gostar dela – mas do acaso). Ainda assim, devo antecipar que o reencontro dificilmente poderia ter sido mais gratificante. Com o seu mais recente álbum ‘Bonefyre’ (lançado em 2022) posto em execução, a formação inglesa enfeitiçara todos os corpos ali presentes com uma inebriante mistura de um vistoso, apaixonante e garboso Alternative Rock de fácil digestão, um macabro, obscuro e intrigante Dark Rock oxigenado a um imersivo e comovente romantismo gótico, e um dançante, hipnótico e contagiante Post-Punk de roupagem estilizada à boa moda dos 80s. Partilhando o ADN de bandas como Bauhaus (esta merecendo até um especial tributo com uma inspirada interpretação do seu tema “She’s in Parties”), Joy Division e Killing Joke, a banda conquistara até o mais rochoso dos corações. Oscilando entre uma melancolia invernal que nos faz lacrimejar e uma branda ardência que é suficiente para em nós causar e conservar todo um abalo emocional, Crippled Black Phoenix foram irrepreensíveis acima do palco. O público sorria, baloiçava e olhava a banda com uma inapagável expressão sonhadora. Ninguém se recusara sentar à volta da fogueira e ouvir – de queixo apoiado na palma das mãos e olhar arregalado – os absorventes contos góticos dos Crippled Black Phoenix, superiormente narrados pela imaculada simbiose entre três guitarras primorosas, um baixo murmurante, fantasiosos teclados de nebulosidade sideral, uma bateria tribal, um saxofone uivante e duas vozes libidinosas. Fomos todos embalsamados e perpetuados numa imperturbável sensação de plena ataraxia que nos climatizara e massajara do primeiro ao derradeiro tema. Uma esponjosa hipnose só quebrada com o desconfortável silêncio que se seguira aos envolventes 60 minutos do concerto, e que deixara a nu o nosso espírito temulento na procura da lucidez que nos havia sido subtraída e sonegada pelo sedutor octeto britânico. Uma das grandes surpresas do SonicBlast.


Dia 1 // Acid King

Com o novíssimo ‘Beyond Vision’ ainda por estrear ao vivo em solo português – sétimo álbum da histórica banda natural da cidade de São Francisco (Califórnia, EUA) que aqui fora imoderadamente elogiado) – era grande, enorme até, a minha expectativa em relação a este tão ansiado reencontro com a banda liderada pela rainha do Riff Lori S. Ao primeiro crepitar das cordas toda a populosa plateia fora atropelada por uma monolítica, feroz e granítica avalanche constituída por um musculoso, sísmico, místico e oleoso Psychedelic Doom de toxicidade a perder de vista. As cabeças rodopiavam pesada e lentamente na instintiva resposta às borbulhantes ondas de calor emanadas de um baixo denso, sisudo, parrudo e tenso, às fortes rajadas de uma mastodôntica guitarra que se agigantava em riffs encorpados, fibrosos, gordurosos e despóticos, e esvoaçava em solos ácidos, serpenteantes, enleantes e elásticos, à potência de uma enérgica bateria de batida seca, forte e incisiva, e à penetrante limpidez de uma voz acrimoniosa, espectral, ecoante e luminosa. Num equilíbrio perfeito entre os clássicos temas que fizeram dos Acid King tudo aquilo que são hoje, e outros de cara lavada, que ainda gatinham, mas que comprovam que até uma banda com três décadas de existência e uma fiel dedicação ao Stoner Rock consegue reinventar-se e modernizar a equação da sua sonoridade, o power-trio rolou o punho e arrancou destemidamente nas suas velhas choppers de motores trepidantes e escapes fumegantes pelas poeirentas estradas do deserto. Na plateia os corpos embatiam lentamente entre si, as cabeças pesavam e baloiçam junto ao peito, e as nossas narinas dilatadas aspiravam toda aquela motorizada reverberação de odor canábico. Os Acid King fizeram justiça à grandiosidade da reputação que ostentam e derreteram os amplificadores e os nossos corações com a sua vulcânica radiação. No final daqueles 65 minutos de psicotrópica robustez não foi nada fácil abrir os olhos, revitalizar o universo sensorial e reencontrar o equilíbrio corporal.


Dia 1 // Hällas

Foi já debaixo de um céu estrelado e com uma brisa marítima suspirada pelo oceano Atlântico a perfumar a atmosfera que os druidas suecos Hällas subiram ao palco secundário do SonicBlast envergando os seus característicos trajes medievais e brindados com uma ruidosa maré de gritos de encorajamento e uma torrencial chuva de aplausos. Deles esperava tudo e tudo eles me deram. Assim que se escutaram e identificaram os primeiros acordes do épico tema “Repentance”, toda a plateia fora banhada e embruxada por um misticismo lunar que não mais a libertara durante todo o concerto. Os nossos olhos chamejavam empolgamento e os nossos ouvidos salivavam ao aventuroso, requintado e majestoso som do quinteto nórdico que nos deleitara com uma intocável performance atestada de nostálgica evocação setentista, aguçada veia romancista e um brilho quimérico, esotérico e ofuscante que descortinara no imaginário de todos os presentes uma envolvente, apaixonante e fabular narrativa desenrolada num palco situado na idade média com vista desimpedida para a eterna noite astral. Num afrodisíaco flirt desavergonhadamente praticado entre um melódico, ostentoso, glorioso e epopeico Hard Rock forjado à velha moda dos britânicos Wishbone Ash e um místico, ritualístico, onírico e fascinante Progressive Rock onde se espelham influências clássicas do género como Genesis, YES, Eloy, Camel e Rush, estes cinco templários escandinavos avançaram de forma triunfante pelas maravilhosas paisagens de uma setlist riquíssima onde temas como “Carry On”, “The Astral Seer” e o hino “Star Rider” fizeram as delicias de todos os seus devotos discípulos que haviam respondido positivamente ao seu chamamento. Na sublime dissertação destas lendárias aventuras e desventuras superiormente arranjadas e musicadas, perfilaram-se duas guitarras siamesas que se engrandeceram na vistosa e galvanizante ascensão de vultosos, principescos, altivos e imperiosos riffs, e redemoinham na caprichosa e alucinante condução de majestosos, virtuosos, epopeicos e tortuosos solos, uma voz profética de pele amarelada, sóbria, aveludada e aristocrática, sombreada de perto por um luminoso e sideral coro vocal, um baixo ufano de bafejos elásticos, pulsantes, ondeantes e magnéticos, um exuberante sintetizador de idílica natureza SCI-FI que – com a sua feitiçaria electrónica e serpenteios bruxuleantes – embrumara toda esta sonhadora atmosfera de uma ofuscante pulverescência estelar, e ainda uma bateria atlética que – com vivaz, tenaz e acrobática precisão – tiquetaqueara e galopara com vistosidade toda esta liturgia na qual ninguém recusara comungar. Hällas ao vivo foi a concretização de um velho sonho, agora finalmente acordado, e que será eternamente recordado.


Dia 1 // Deathchant

Com presença marcada (a dobrar) na anterior edição do SonicBlast, os enérgicos Deathchant pisavam o palco secundário do festival pelo segundo ano consecutivo, mas nem isso fez esfriar todo o meu entusiasmo renovado por voltar a experienciar toda a erupção de endorfinas que o indomável quarteto californiano liberta na atmosfera. Cruzando um musculoso, motorizado, destravado e acintoso Heavy Rock cadenciado a um dinâmico coice Punk e sintonizado na mesma frequência de Thin Lizzy e Motörhead, com um imperioso, melódico, enigmático e umbroso Proto-Metal revolvido a efervescente psicadelismo, e ainda um chamejante, corrosivo, eruptivo e excruciante Grunge de febril fogosidade a fazer recordar Melvins e Corrosion of Conformity, estes irreverentes motards de coletes de cabedal envergados e locomovidos a alta rotação deixaram um inapagável rasto de negrura, perversão e diabrura em todos aqueles que os testemunharam acima do palco. Fora dele ampliava um verdadeiro olho do furacão com corpos tombados, banhados de cerveja e suor, e centrifugados num enlouquecedor ciclone que deixara muitas vítimas pelo caminho. Deathchant foram iguais a si mesmos e detonaram uma verdadeira bomba de adrenalina. De negativo só mesmo os repetitivos problemas no amplificador de uma das guitarras que obrigara a banda a desacelerar a sua característica cavalgada infernal, escoiçada por uma bateria de baquetas em chamas, duas guitarras predatórias de riffs altivos e solos giratórios, um baixo trovejante de linhas ventosas e duas vozes felinas de rugidos rouquenhos. Não foi fácil escapar ileso a mais uma selvática performance dos impiedosos Deathchant.


Dia 2 // Monarch

Os norte-americanos Monarch eram uma das bandas que eu mais ansiava ver ao vivo desde que os conhecera há quase dez anos. O quarteto trazia consigo o resplandecente Sol californiano, a salgada fragância a maresia e um colorido, açucarado e refrescante cocktail sonoro onde são conjugados um lustroso, revitalizante, deslumbrante e odoroso Psychedelic Rock, um estético, serpenteante, dançante e hipnótico Progressive Rock e ainda um agradável, caramelizado, condimentado e afável Psychedelic Pop. A leveza, o requinte e a subtileza do seu som sobrevoava todos os corpos ali presentes e vivia-se um clima de perfeita harmonia. Foi fácil selar as pálpebras, sorrir e zarpar pelo mar azul diamantino adentro à boleia de Monarch. A banda-sonora perfeita para bebericar uma cerveja gelada, emoldurar coloridos crepúsculos, e içar as velas da nossa imaginação, desaguando num veraneio paraíso sensorial. Acima do palco os apaladados, meigos e aveludados acordes da guitarra entrelaçavam-se na quente reverberação de um baixo movediço, os teclados salpicavam o ambiente com doces melodias de frescura oceânica e beleza crepusculina, enquanto que a bateria costurava com cuidado primor os arejados temas retirados dos dois álbuns da banda. Foram 40 minutos de sublimada ataraxia que nos adormeceram os sentidos e desabrocharam o sorriso no rosto bronzeado pelo vigilante Sol que ostentava vitalidade. Quando os californianos desligaram os amplificadores, pousaram os instrumentos e se despediram do público, fiquei com a estranha sensação de que não havia saciado na totalidade toda a sede que eu tinha de os ver ao vivo. Resta-me aguardar pacientemente por um regresso a Portugal.


Dia 2 // Bombino

Depois de ter visto Bombino ao vivo pela primeira vez no já distante ano de 2012, o entusiasmo por duplicar essa experiência transbordava em mim. Assim que o músico tuaregue entrara em palco, visivelmente feliz e maravilhado com aquela apoteótica recepção, o contágio da boa energia foi instantâneo e transversal a todos os corpos ali presentes. E assim que soaram os primeiros acordes do seu ritmado, apimentado, dançante e empolgante Desert Blues, a populosa plateia entrou num inquebrável transe espiritual que a impulsionara a dançar do primeiro ao último tema. As pessoas sorriam entre si – numa radiosa e plena harmonia extensível a todas as gerações ali presentes – tombavam as pálpebras e serpenteavam os braços na direcção de um céu pincelado a pigmentações crepusculares. Vi crianças e idosos a sacudirem os seus corpos numa ataraxia generalizada que todos conquistou sem excepção. Acima do palco, o trio desdobrava um arenoso manto de areias douradas e volumosas dunas sobre Vila Praia de Âncora, remetendo o nosso imaginário para um aventuroso safari pelos desertos do norte de África. Durante uma hora entregámos o nosso espírito por inteiro à quente musicalidade da formação natural da República do Níger, e libertámos todos os nossos membros e sentidos à irresistível boleia de uma guitarra endeusada que se envaidecia em cativantes, cálidos, lépidos e excitantes acordes e endoidecia em fugidios, alucinantes, trepidantes e escorregadios solos que percorriam uma perpétua escadaria em espiral, levando todos os presentes aos braços do nirvana, de um baixo deliciosamente Funky que a todos conquistara com a sua reverberação saltitante, bailante e sedutora, uma bateria irresistivelmente groovy de ritmos tanto relaxantes quanto euforizantes que controlavam as palpitações cardíacas de uma plateia arrebatada, e uma voz destemperada, cantada na sua língua materna. Naquele momento nenhum de nós desejaria estar em algum outro lugar do Universo. Saímos todos mais bronzeados e extasiados do concerto de Bombino.


Dia 3 // Kanaan

No terceiro e derradeiro dia do SonicBlast fiz os possíveis e impossíveis para não perder a possibilidade de assistir a um dos concertos por mim mais aguardados desta edição do festival, e às 14h estava já à entrada do recinto com uma transparente expressão de extravasante satisfação misturada com impaciência, impossível de disfarçar. Deles esperava toda uma estonteante explosão de adrenalina e as mais elevadas expectativas a eles dedicadas foram integralmente cumpridas. Conseguem imaginar os lendários Kyuss saídos de uma academia de Jazz com os diplomas de finalistas debaixo dos braços? Se sim, acabam de alcançar os domínios musicais dos noruegueses Kanaan. Misturando uma retumbante, dinâmica e electrizante efervescência psicadélica com caóticos, exóticos e delirantes devaneios jazzísticos, o irreverente tridente nórdico fez estremecer os alicerces do palco 3 do SonicBlast com toda uma explosiva descarga de potência incontida. Trazendo uma setlist dominada pelo seu mais recente trabalho ‘Downpour’ (aqui largamente elogiado) e pelo seu antecessor ‘Earthbound’ de 2021 (que aqui mereceu igualmente os maiores louvores), os incendiários Kanaan embarcaram toda a plateia numa selvática montanha-russa de emoções à flor da pele. Uma ardente comoção instrumental despontada e sustentada por uma altiva guitarra de riffs fibrosos, fogosos e entusiasmantes, um baixo viçoso de linhas obesas, coesas e abrasivas, e uma bateria endiabrada de pratos relampejantes, tarola metralhada e timbalões acrobáticos que pôs à prova a resistência das fundações da nossa sanidade mental. Kanaan ofereceu a todos os presentes uma performance verdadeiramente triunfante que só pecou pela sua curta duração. A portentosa explosividade transpirada pelo tema final “Return to the Tundrasphere” ainda hoje ecoa em mim. Foi, aos meus olhos e ouvidos, um dos mais épicos concertos do SonicBlast.


Dia 3 // Earthless

Seguiam-se os titãs Earthless debaixo de um Sol vibrante e a plateia começava a solidificar-se em frente ao palco principal. Depois de uma imersiva introdução de tez plácida e reflexiva – brilhantemente conduzida pelo Jimi Hendrix da era moderna Isaiah Mitchell – o tema “Night Parade Of One Hundred Demons, Pt. 1” (retirado do seu mais recente álbum ‘Night Parade Of One Hundred Demons’ que aqui fora escalpelizado) ganhou forma e fez com que uma crescente tempestade psicotrópica se abatesse sobre a agradável localidade costeira de Vila Praia de Âncora. Embalados na vertigem das suas evolutivas, criativas e exploratórias jams – nutridas por um sónico, cósmico, catártico e alucinante Heavy Psych com vista desabrigada para o Cosmos – sentimos a nossa alma transcender, deixando para trás o nosso corpo tombado e inanimado, driblando o abraço gravitacional de todos os astros que se iam revelando no horizonte alienígena. Uma estonteante propulsão às costuras fronteiriças que delimitam a eternidade ultraterrestre nas asas de uma guitarra ácida que redemoinha em viscosos, intrigantes, atordoantes e sumptuosos riffs de onde sobrevoa todo um furioso enxame de solos gritantes, orgásmicos, selváticos e delirantes, um baixo compenetrado que – com as suas linhas sombreadas, coesas e encorpadas – repete com insistência todas as sílabas do riff-base, e uma bateria incisiva de pratos flamejantes e tambores galopantes que esporeia toda esta virulenta alucinação. De cabeças entorpecidas e corpos baloiçados, soterrámos o nosso espírito nas fantasmagóricas nebulosas que vagueiam pela eterna vacuidade da noite cósmica. Earthless deleitou todos os presentes com um esponjoso ritual de atmosfera etérea que nos viajara nas costas de um cometa pela negra e texturizada malha de um Cosmos pulsante. Depois de findadas as suas magnetizantes jams, e de forma a despertarem os ouvintes de uma profunda narcose onde nos haviam aprisionado, a histórica banda californiana encerraram a sua inatacável performance com a já previsível versão cover do tema originário dos britânicos The Groundhogs “Cherry Red”. Este electrizante tridente californiano levou-nos a surfar os anéis de Saturno, e não foi fácil encontrar a rota de regresso à Terra.


Dia 3 // The Black Angels

Os texanos The Black Angels – do alto das suas duas décadas de prolífica existência – eram uma das maiores atracções desta 11ª edição do SonicBlast, e se dúvidas disso houvessem, bastaria observar a multidão que se juntara e firmara posição em frente ao palco principal do festival para assistir ao concerto de uma das maiores referências dentro do Psychedelic Rock contemporâneo. E foi já com o recinto lotado que a consagrada formação americana deu início a um verdadeiro hipnotismo sacramental que a todos deleitara sem excepção. Fundamentados num xamânico, místico, cerimonial e desértico Psychedelic Rock de adereços étnicos e num anestésico, mesmérico, ritualístico e embriagante Krautrock que nos mumifica e petrifica, os The Black Angels cavalgaram harmoniosamente pela sua discografia, oferecendo a todos os presentes uma performance verdadeiramente absorvente que não deixara ninguém recostado à indiferença. De olhos postos no ecrã que, atrás da banda, ia exibindo magnéticas imagens de padrões caleidoscópicos que giravam numa contínua espiral e de espírito aberto a tudo o que a sonoridade Western’eana dos The Black Angels nos revelava, foi fácil sermos transportados para um deserto de areias bronzeadas e farolizado por um avermelhado Sol poente, montados num cavalo cansado de galope pausado. A meio caminho entre a doce letargia e a ardente euforia, comungámos mescalina via auditiva e percorremos, sonâmbulos, as áridas paisagens sonoras de The Black Angels. As duas guitarras poeirentas dançavam entre si, numa mágica simbiose de onde desprendiam atmosféricos acordes e feéricos solos, o fluído baixo suspirava encaracolados bafejos, a bateria tribal avançava a ritmo imutável, a pandeireta embatia secamente na palma da mão crepitando os seus brilhantes guizos (qual cobra-cascavel de cauda chocalhante), a arenosa harmónica trazia-nos o uivo do coiote debaixo da pálida Lua, o quimérico mellotron acordava as fornalhas estelares no negro manto nocturno, e uma voz melódica, ecoante e messiânica sobrevoava com desarmante distinção toda esta caravânica digressão pelos longos desfiladeiros da nossa espiritualidade. No final dos 70 minutos que balizaram a sua aliciante actuação, acordámos de sentidos embaciados e embebidos num profundo êxtase. The Black Angels ao vivo foi uma transformadora liturgia indígena, cuja ressaca da mesma ainda hoje perdura.


Dia 3 // Church of Misery

Herdeiros dos mitológicos Black Sabbath e com uma incurável obsessão pelos mais abomináveis serial-killers da história da humanidade, os nipónicos Church of Misery regressavam ao SonicBlast para nos encarvoar com a sua demoníaca, violenta e monolítica negrura. Hasteando bem alto a bandeira do rastejante, nebuloso, poderoso e intrigante Doom Metal zebrado de algum psicadelismo, o diabólico quarteto sediado na cidade-capital de Tóquio e com quase trinta anos de existência brindou a ruidosa plateia com uma psicotrópica descarga de luciférica ardência que nos profanara a alma e sepultara nas profundezas do lado eclipsado da religiosidade. De punhos firmemente cerrados nas rédeas desta infernal galopada, dentes cravados no lábio inferior, olhar apagado e cabeça rodopiante, fomos desencaminhados e levados pela doentia perversão da sonoridade de Church of Misery. Sufocados pela espessa obscuridade que as colunas vomitavam, mergulhámos nas trevas habitadas por uma guitarra Iommi’esca que se agigantava em lamacentos, pegajosos, umbrosos e fumacentos riffs e descarrilava em solos avinagrados, engordurados, efervescentes e cáusticos, um prepotente baixo de pele rugosa, rígida e sebosa, uma fulminante bateria pontapeada e vergastada a um ritmo galopante, e vocais flamejantes, sangrentos e urticantes e guturais. Com o seu mais recente trabalho ‘Born Under A Mad Sign’ a merecer a maior fatia de protagonismo, a banda japonesa sacudiu e conquistou toda uma alvoroçada maré humana. Church of Misery fez ruir a mais fortificada resistência e a contaminação profana foi generalizada. Não foi fácil regressar deste concerto.


Dia 3 // LOVE GANG

LET’S BOOGIE! Com a missão de encerrar esta 11ª edição do SonicBlast, os norte-americanos LOVE GANG – naturais da cidade de Denver, no Colorado – presentearam toda populosa, agitada e ruidosa plateia – sedenta por experienciar algo assim – com uma performance verdadeiramente avassaladora que ficará, decerto, irremediavelmente gravada na história do festival. Da minha parte, o rebelde quarteto representava uma das mais irresistíveis atracções do SonicBlast e, por isso, nem o cansaço acumulado e tampouco a sonolência que já dava em mim algumas mostras da sua influência conseguiram deter esta minha vontade férrea de vivenciar aquela que é uma das minhas bandas favoritas da actualidade. Com o recentíssimo ‘Meanstreak’ (aqui copiosamente reverenciado) ainda a dissolver-se debaixo da língua, os LOVE GANG arrancaram a toda a velocidade para uma exibição monstruosa que fizera a tenda do palco 3 rebentar pelas costuras. Locomovida a um musculado, fogoso e lubrificado Hard Rock de alta octanagem, um apimentado, serpenteante e torneado Heavy Blues de balanço Boogie, e ainda um combativo, predatório e altivo Proto-Metal que nos crava os dentes caninos na jugular, esta quadrilha selvagem provocara no público um indomável vórtice onde dezenas de corpos rodopiavam ferozmente, deixando um rasto de densas nuvens de poeira que nos turvava a visão. Numa verdadeira ode ao espírito dos 70’s e de inspirações apontadas a vultosas referências da época como Cactus, Toad, Motörhead, MC5, Sir Lord Baltimore, Mountain, Leaf Hound, ZZ TOP, Budgie, Pappo’s Blues, Iron Claw, Truth and Janey e Highway Robbery, os irreverentes LOVE GANG mergulharam-nos a todos num autêntico caldeirão em intensa ebulição que nos escaldara amotinara de uma insana exaltação. Agredidos pela vulcânica, titânica e destravada ferocidade com o epicentro acima do palco, fomos levados aos píncaros da loucura à estonteante boleia de uma guitarra intoxicante que se manifestara em flamejantes, empolgantes, espadaúdos e trepidantes riffs de onde ziguezaguearam ácidos, desvairados, giratórios e efervescentes solos, um robustecido baixo motorizado a linhas sombreadas, tensas, densas e oleadas, um enfeitiçante teclado que se adensara em bailados intrigantes, harmoniosos, cerimoniosos e encaracolados, uma pujante bateria de forte odor a pólvora, esporas ensanguentadas e baquetas em chamas que cavalgara à rédea solta numa ritmicidade verdadeiramente vertiginosa, e ainda uma liderante voz Lemmy’esca de pele fragosa, rouquenha, urticante e fervorosa. LOVE GANG foi uma tempestade de areia, banhos de cerveja e um forte odor a suor misturados com uma adrenalina impossível de conter. No final, a vontade de prolongar aquela festança foi tanta, que a banda obedecera aos audíveis desejos de uma plateia completamente rendida, trazendo a palco os negros ecos Black Sabbath’icos da célebre “Paranoid” na voz de um dos vocalistas de Deathchant. Esta edição do SonicBlast não poderia ter terminado de melhor forma. LOVE GANG ao vivo trespassara as fronteiras da perfeição e despediram-se debaixo de uma ensurdecedora ovação, com punhos cerrados e copos de cerveja transbordante hasteados bem alto.

A caminho de casa, combalido, inebriado e de passo trôpego, olhei uma última vez para as cada vez mais distantes luzes do recinto do SonicBlast – abraçadas pela neblina da madrugada – e sorri com nostalgia. Há muito que este festival tem esse efeito em mim. Basta um pé fora do recinto para que se apodere de mim um súbito desejo de a ele regressar. E como nem só da melhor música é feito o SonicBlast, é-me igualmente essencial brindar aos gratificantes reencontros com tantos e tantos rostos amigáveis que a música tratou de interligar e imortalizar (vocês sabem quem são). Agora a pergunta que se impõe fazer: falta muito para agosto de 2024? Até lá.

 

📸 Eduardo Cunha // El Coyote
📸 Tiago Esteves // El Coyote
📸 Bruno Pereira // Wav.

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