Ainda a manhã de sábado se
espreguiçava quando um fulgurante banho solar irrompera pelos céus límpidos de
Valada e desmaiara acima das tendas atracadas no Parque de Merendas. As minhas
pálpebras já seladas com pouca firmeza cederam à primeira luz do dia e depressa
acorri ao exterior para inalar a réstia da tímida e fresca brisa que combatia o
crescente calor que gradualmente se apoderava da atmosfera. Depois de uma veemente imersão
de lucidez tomada abaixo de um chuveiro de água fria, e um tranquilizante
repouso na esplanada junto ao rio Tejo debaixo de um todo-poderoso Sol que
governava os céus com total soberania, estava pronto a vivenciar com plena
entrega e devoção o derradeiro dia do festival Reverence Valada.
Øresund Space Collective
Foi desta formação
escandinava que sobressaiu um dos momentos mais encantadores do festival. Alicerçada
à envolvente mistura de Prog-Space-Jazz
com claras evocações ao Psych Rock
florido nos 60’s, a banda liderada pelo eremita Scott Heller (Dr. Space)
fez-nos eclodir numa hipnótica odisseia que nos passeara pelas costuras de um
Cosmos bocejante. As suas fascinantes e absorventes jams expandem-se pela nossa alma, assumindo com autoridade as
rédeas de uma incrível passeata pelas imensas e resplendorosas planícies da
introspecção. A plateia vivenciava um verdadeiro estado de transe alimentado
pelas incríveis divagações espaciais de Øresund
Space Collective. O êxtase estava instaurado em Valada e nada poderia
perturbar toda aquela atmosfera onírica que embrulhara aqueles corpos dançantes.
A banda e o público nutriam uma perfeita simbiose. As duas guitarras errantes
entrelaçavam-se em embriagantes e aveludados acordes que se metamorfoseavam em
sidéricos solos capazes de nos espevitar nesta intensa hipnose. A bateria
jazzística temperava com perícia e emoção toda esta caravana estelar, o baixo
de ondulação robusta e ritmada tonificava e regulava toda esta esquizofrénica
digressão, e o sintetizador empoeirava toda a plateia com a sua mágica
nebulosidade astral. Foi impossível não dançar Øresund Space Collective de forma detida e extravagante. Uma
autentica propulsão da nossa consciência pelo lado eclipsado da Lua.
Steak
Aos primeiros riffs de Steak segredei a mim próprio: “Estava mesmo a precisar de um
concerto assim!”. O enérgico quarteto londrino pôs toda a plateia refém de uma
euforia desmedida na instintiva resposta corporal ao seu poderoso, fibrado,
denso e torneado Stoner Rock de ares
desérticos. De maxilares cerrados, cabeças e cabelos em alvoroço e punhos
erguidos, o público entregava-se aos portentosos domínios de Steak que debitavam em nós a adrenalina
em estado musical. Foi uma performance intensa e estonteante que nos sacudira
com veemência do primeiro ao último minuto. A soberana guitarra de riffs abrasivos e dominadores –
facilmente sussurrados pelo público – e solos delirantes e penetrantes conduzia
os nossos corpos transpirados de entusiasmo, o possante e vibrante baixo
fazia-nos estremecer, a bateria explosiva e dinâmica fortificava toda aquela
comoção, e a voz feroz e aguerrida liderava e instigava aquela desgovernada
locomotiva sonora dada pelo nome de Steak.
A performance deste quarteto inglês adjectivou-se um verdadeiro hino à
exaltação que nos assolara do primeiro ao último tema. No final do concerto
apenas restou a levitação da poeira naquele solo agredido, a respiração
arquejante e os nossos corações acelerados.
Papir
Estimulado pela performance
deste tridente dinamarquês na agradável companhia de Dr. Space dada no passado
dia de festival, tudo em mim gritava e ansiava pelo concerto de Papir. Perspectivava uma encantadora jornada
pelo estético, sublime e deslindado Psych
Rock de feições Kraut’eanas e assim
se materializou. Papir foram
irrepreensíveis acima do palco e (e)levaram toda uma plateia já embriagada aos
prazerosos braços do deslumbramento. Foi um final de tarde verdadeiramente
mágico em que se viveu uma contagiante emoção epicurista promovida pela
sedutora e inspiradora sonoridade de Papir.
O paraíso estava instaurado em Valada e nada parecia enfraquecê-lo. A brisa
veraneia do entardecer atrelava-se à agradável musicalidade de Papir e acariciava-nos com suavidade. Foi
de olhar selado e sorriso esculpido no rosto que respondi a uma guitarra ataráxica
de acordes elegantes e atraentes e solos hipnóticos, uma bateria imensamente
cativante que massaja toda esta etérea erupção musical com sentimento e
habilidade, e um baixo de danças magnetizantes e voluptuosas que robustece esta
endorfina via auditiva. Respirava-se a doce e edénica inércia. Papir foi um dos concertos mais soberbos
e deleitosos do Reverence Valada, e
a ressaca do mesmo ameaça perdurar em nós durante muito e muito tempo.
With the Dead
Foi já debaixo de uma noite
obscurecida que este quarteto de alma vendida aos luciféricos domínios do Doom Metal desprendera uma cáustica e
portentosa avalanche decibélica que nos arrasara sem qualquer misericórdia. A
plateia reagia como podia perante toda aquela maciça, reverberante e
inquisidora radiação Doom’esca. With the Dead
converteram todos aqueles peregrinos musicais que jaziam em frente ao palco em
seus devotos apóstolos. Foi demasiado fácil deixarmo-nos assombrar e conquistar
pela sua portentosa e impiedosa sonoridade, e detonarmos numa extravagante
resposta comportamental. Respirava-se detidamente toda a psicotrópica exalação
de With the Dead e os nossos corpos
inanimados testemunhavam a sagrada eclosão da alma. A titânica guitarra de
danças demoníacas envaidecia-se em monolíticos riffs que nos sombreavam, o
supremo baixo agigantava-se em possantes e vibrantes bafagens, a cintilante e
ecoante bateria galopava com autoridade toda esta atmosfera amaldiçoada,
enquanto que os vocais gélidos, diabólicos e distorcidos mantiam-nos de olhar
vigilante e atracado naquele nefasto altar. With the Dead foi um inesquecível ritual ao qual ninguém se recusou
a comungar. Muito provavelmente o melhor concerto deste último dia de Reverence Valada e certamente um dos
mais nebulosos que presenciara em toda a minha vida.
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