quinta-feira, 15 de agosto de 2019

⚡️ SonicBlast Moledo: Dia 2 ⚡️

Depois de uma noite de sono intranquilo – diversas vezes importunado pelas profusas tertúlias incessantemente conduzidas pelos mais variados idiomas – as minhas pálpebras recolhiam aos primeiros raios solares da manhã. Num movimento brusco e decidido – contrariando o ócio de quem ainda se esperneia na cama – desafoguei a cabeça sonolenta do interior da tenda e de narinas bem dilatadas inalei os frescos e vivificantes ares bafejados pelo oceano. O segundo dia de SonicBlast trazia a tão ansiada esperança de que pudesse decorrer num cenário climatérico contrastando (para melhor, é claro) com aquele que marcara uma vincada presença no dia anterior. Os incisivos ruídos dos fechos zíper das tendas iam golpeando a plácida atmosfera matinal que governava no campismo, e as geleiras eram arrastadas para o exterior. Avizinhavam-se os já habituais planos de revitalização na preparação física e mental para o segundo dia de festival: um demorado passeio pelo paredão à beira-mar e um relaxado almoço pelas principais artérias de Moledo.

Da Califórnia à velha Pérsia em Skate
E foi já ao crescente som do colectivo português O Bom, o Mau e o Azevedo que iniciámos a caminhada de aproximação ao recinto do festival. Munida de um envolvente, despreocupado, aromatizado e eloquente Surf Rock de adorável e afável ambiência Western fora do coldre, a fresca, campesina e agradável sonoridade deste peculiar quarteto de origem lusitana tem o dom de no nosso imaginário erigir e dirigir toda uma imersiva narrativa cinematográfica, que nos coloca a trote pausado de um cavalo cansado pelo arenoso solo de um infindável deserto bronzeado pelo intenso e ofuscante Sol poente que se debruça e esbate no inalcançável horizonte. Uma musicalidade deveras inspiradora, arrebatadora e visual – a fazer recordar os californianos Spindrift – à qual nem o Quentin Tarantino ficaria indiferente. Lamentei profundamente ter chegado ao recinto já quando estes quatro cowboys abandonavam o saloon – deixando no seu interior um forte odor a pólvora, whiskey vertido e incontáveis corpos caídos de armas empunhadas – e se perdiam no chamejante horizonte desértico. Seguia-se o volumoso, enérgico e tumultuoso Skate Punk dos bracarenses Mr. Mojo que motivava nova reaproximação da plateia até à frente do palco principal. E foi à instigante boleia de duas guitarras erosivas, um baixo possante, uma bateria galopante e uma voz gutural que os primeiros headbanging’s do dia ganhavam um aparatoso protagonismo. Uma empolgante performance exemplarmente orientada a uma só velocidade que atestara de adrenalina todos aqueles aos quais a poderosa ressonância de Mr. Mojo alcançava. Um aplauso motivador a esta jovem banda portuguesa que se adjectivara como o aperitivo perfeito para o que aí vinha: Petyr. É justo começar por admitir que este quarteto californiano – sediado na carismática cidade de San Diego e superiormente liderado pelo Riley Hawk (filho do lendário pro-skater Tony Hawk) – recolhia para ele mesmo o estatuto de banda que eu mais ansiava experienciar não só naquele segundo dia, mas no conjunto dos três dias de SonicBlast. De influências apontadas aos míticos Black Sabbath e aos norte-americanos Witch, os jovens Petyr escudam-se num euforizante, tóxico, nebuloso e alucinante Heavy Psych com indiscretas aproximações a um titânico, obscuro, luciférico e messiânico Proto-Doom de tração setentista. Depois de em 2017 ter reverenciado o seu homónimo álbum de estreia (review aqui), premiando-o mesmo com o título de melhor registo lançado nesse mesmo ano (listagem aqui), e de no passado ano de 2018 ter replicado toda esta minha fascinação ao seu segundo trabalho de longa duração ‘Smolyk’ (review aqui), era com o coração taquicardíaco e membros convulsionados pela ansiedade que me firmava em frente ao palco de olhar incendiado em entusiasmo. E o que se seguiu foi uma selvática cavalgada esporeada por duas guitarras que se consolidavam na ascensão de intrigantes, portentosos, rumorosos e inflamantes Riffs arábicos e dialogavam em trepidantes, desvairados, excitados e atordoantes solos, um pulsante e possante baixo de linhas sombreadas e carregadas a um hipnótico misticismo, uma bateria explosiva, acrobática e altiva de ritmicidade imprópria para cardíacos, e uma voz ácida, ecoante, penetrante e diabrina que emergia das abissais profundezas desta psicotrópica absorção. Petyr ao vivo foi um implosivo petardo que brotara em cada um de nós. Uma constante e sónica vertigem à qual tudo em mim obedecia. De destacar ainda a inspirada reinterpretação de “Satori III” – originária dos nipónicos Flower Travellin' Band (‘Satori’, 1971) que – aos meus ouvidos – supera a original. Ao irrepreensível som de Petyr – num admirável equilíbrio entre a pujança, a agilidade e o virtuosismo – foi-me demasiado fácil imaginar Black Sabbath sobrevoarem os crepusculares céus da velha Pérsia e por ela se deixarem influenciar. No final do concerto encontrava-me de corpo cambaleante, visão embaciada, alma integralmente pasmada e expectativa largamente saciada. Depois de todo aquele violento e exuberante exorcismo sensorial que me fizera rasgar as vestes da lucidez, era tempo de regressar ao campismo e procurar no conforto da tenda – bem como no fundo da geleira – toda a estabilidade que Petyr me subtraíra e tardava em devolver.

Esquizofrenia, doce Paralisia e a pesada Volumetria
E como nem só de música é feito o SonicBlast, a minha consciência despiu o seu traje arbitrário e permitiu – sem sequentes juízos lesivos – que preenchesse as próximas horas com entretidas e fraternas conversas entre novos e velhos amigos. Caras conhecidas de almas aparentadas cruzavam-se comigo e a circunstância imposta pelo acaso obrigava à enriquecedora troca de palavras e afectos. E não fosse a minha imutável vontade de experienciar ao vivo pela segunda vez os finlandeses Kaleidobolt, ainda agora lá estaria completamente sorvido nas estimulantes e movimentadas conversações. O meu passo apressado locomovia-me na direcção do recinto principal à mesma velocidade que os instrumentos deste dinâmico power-trio eram executados. Depois de ter desconstruído e devidamente reverenciado os seus três álbuns (‘Kaleidobolt’, ‘The Zenith Cracks’ e o seu recentíssimo ‘Bitter’) e de no outono de 2017 os ter ouvido ao vivo pela primeira vez na abertura para o concerto do tridente californiano Radio Moscow (review aqui) estava novamente entusiasmado por testemunhar este mirabolante embate entre um poderoso, furioso, enérgico e vigoroso Hard Rock de influência clássica e um empolgante, oleado, rebuscado e magnetizante Heavy Prog de essência setentista. E assim aconteceu. Iguais a si próprios, os Kaleidobolt avançaram para uma performance verdadeiramente irrepreensível onde a maestria foi executada a uma ferocidade estonteante e a uma agilidade vertiginosa. A sua sonoridade intensamente extravagante – saturada de inesperadas alternâncias rítmicas – é balanceada entre pacíficos momentos condimentados a uma luxuriosa orientação jazzística que nos convidam a desmaiar as pálpebras e a levitar a espiritualidade, e outros momentos atestados de pura e desenfreada adrenalina que nos agridem, revolvem e centrifugam a alma. Contando ainda com a inlusão da prontamente reconhecida e apaladada cover de “21st Century Schizoid Man” (pertencente aos clássicos King Crimson, 1969) os Kaleidobolt despediram-se de Moledo de instrumentos ao alto e debaixo de uma calorosa, ruidosa e merecida ovação. Repetentes no SonicBlast, os polacos Belzebong subiam a um palco que bem conhecem com o seu fumarento, pestilento, psicotrópico e luciférico Doom Metal embrumado e enlameado por uma carregada sonoridade de tonalidade pantanosa, nebulosa, morfínica e tenebrosa que provoca no ouvinte efeitos em tudo semelhantes aos do Tetraidrocanabinol (mais comumente catalogado de THC). De semblantes pálidos, olhares distanciados e troncos balanceados, a plateia respondia como podia perante toda aquela tensa e monolítica reverberação transpirada do palco. Depois da impressionante e inesgotável galopada promovida pelos enérgicos Kaleidobolt, os Belzebong anestesiaram-nos e arrastaram-nos consigo para o lado eclipsado do empolgamento. Submersos numa intensa e permanente narcose que nos climatizara e inebriara do primeiro ao derradeiro tema, não foi nada fácil aceitar que o concerto havia já terminado, seguindo-se uma demorada reactivação da lucidez sensorial. Tempo para uma descontraída incursão até à zona de restauração e de regresso ao recinto agendado para os históricos Orange Goblin. Capitaneada pelo impetuoso colosso Ben Ward, esta incontornável banda londrina é desde há muito uma das mais consagradas referências dentro do universo Stoner europeu, e o concerto que se seguiu fez – uma vez mais – jus a esse título que merecidamente ostenta. Foi com base no seu potente, expressivo e vibrante Stoner Metal de vigorosa e estrondosa dimensão que o SonicBlast se transformara numa autêntica arena onde populosos, ciclónicos e tumultuosos Mosh Pit’s borbulhavam dentro daquele vulcânico caldeirão humano, enquanto que o Crowd Surf também era uma válida manifestação na instintiva exteriorização do que é vivenciar todo o fulgor de um concerto de Orange Goblin. De punhos cerrados e cervejas ao alto, o eloquente vocalista Ben Ward acicatava todo um público afogueado pela exaltação. Do palco eram libertados motorizados Riffs de fácil digestão e veneração, e fora dele o ambiente era de um selvático frenesim. A par do que acontecera em 2017 aquando da sua estreia em Moledo (review aqui), o quarteto inglês mostrou-se irredutível na arte de entusiasmar toda uma plateia sedenta de algo assim. Com o apoteótico final de Orange Goblin, o meu segundo dia de festival estava também findado.

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