Foi já na
agradável companhia de um Sol crepuscular que os canadianos Black Mountain
subiram ao palco principal e saudaram a crescente plateia à hipnótica boleia do
tema introdutório “Mothers of the Sun”, imediatamente reconhecido e
aplaudido. Conheci a banda há quase duas décadas e a mesma desperta hoje em mim
um doce sentimento nostálgico sempre que a escuto, portanto, experienciá-la
pela primeiríssima vez ao vivo era algo muito especial que me deixava com um
inapagável sorriso parvo no rosto. O bafo morno do Sol entrelaçava-se na fresca
e húmida brisa trazida pelo oceano, enquanto que o magnetizante, lânguido,
açucarado e deslumbrante Psychedelic Rock com vista desabrigada para o enfeitiçante,
arejado e viajante Space Rock de mãos dadas a um afável, dançante,
embriagante e adorável Indie Rock de inclinação radiofónica deixava o
ouvinte petrificado num extasiante estádio anestésico que o embrulhara do
primeiro ao derradeiro tema. Velhos temas como “Stormy High”, “Wucan”
e “Druganaut” envolveram e revolveram o público num generalizado estado
de transe só interrompido com a chegada do desconfortável silêncio que se lhes
seguiu. Os corpos baloiçavam e levitavam – mergulhados numa profunda hipnose –
ao som de uma guitarra flexuosa, um sintetizador futurista, uma bateria
esponjosa, um baixo ondulante e duas vozes (uma masculina e outra feminina) que
se entrançavam num misto de sensuais sussurros caramelizados e uivos de uma
luzência virginal capazes de engravidar a Lua. Black Mountain
presentearam-nos com uma performance verdadeiramente atraente, deleitosa e
absorvente que nos deixara sem chão e com todo um céu de infindável fundura
para explorar. Não foi fácil acordar deste sonho sublimemente musicado.
Debaixo de um negro
e acetinado manto nocturno, os largamente aguardados Graveyard subiram a
palco, abafados por um barulhento aplauso de grandes louvores e gritos
encorajadores. Ainda os carismáticos músicos suecos agarravam e calçavam os
seus instrumentos, e fora do palco o pulsante entusiasmo já era palpável. Foi
num perfeito equilíbrio entre melosas baladas e fogosas galopadas que a turma
escandinava derreteu e inflamou os nossos corações. Com uma previsível e compreensível
aposta bem vincada nos novos temas que compõem o seu mais recente álbum ‘6’
(aqui trazido, desconstruído e elogiado), foram mesmo os poucos
clássicos executados em palco como “Ain’t Fit To Live Here”, “Hisingen
Blues” e “The Siren” desta banda que faz do harmonioso, refinado,
adornado e lustroso Classic Rock de florida moldura setentista com a
inquebrável fibra do atlético Hard Rock e a resinosa melosidade do afrodisíaco
Blues a sua bandeira, a colher os mais vistosos acessos de empolgamento
vividos fora do palco. Os rugidos queimantes, melódicos e urticantes do Joakim
Nilsson aqueciam-nos naquela fresca noite minhota, enquanto que as torneadas
guitarras, o pulsante baixo e a acrobática bateria baloiçavam o nosso corpo
invertebrado e climatizavam o nosso espírito rendido. Ainda assim, considerei
um tanto enfadonho que a banda se tenha perdido no prolongamento de temas – em
formato jam – ao invés de acrescentar outros à sua setlist. Não
está nada fácil manter acesa esta já frágil chama de esperança que um dia possa
testemunhar Graveyard a executar ao vivo temas do seu álbum de estreia
(que é, de longe, o meu favorito, mas a banda parece querer engavetá-lo no
esquecimento). Ainda assim, Graveyard ao vivo é sempre uma experiência
enriquecedora, tal é o seu talento e a incrível simbiose instrumental
conversada em palco. Fora dele, o público pareceu não ficar inteiramente
saciado com o que nos fora oferecido por uma das bandas mais queridas desta 12ª
edição do festival.
Com a responsabilidade de abrir este novo dia de SonicBlast, os minhotos
Jesus the Snake subiram ao terceiro palco do festival e brindaram todos
os presentes com uma arejada, apaladada e revitalizante brisa que avivou os
rostos corados e suados de todos aqueles que se refugiavam no interior da tenda
que engole o palco 3. Velejando pelas tranquilas águas do infindável oceano
cósmico, este quinteto português recolheu a âncora e viajou calmamente pelas
paradisíacas praias do lenitivo, etéreo e meditativo Psychedelic Rock de
deslumbrante sotaque Pink Floyd’eano e do fascinante, ondulante e
radioso Progressive Rock de indiscreta inspiração colhida em clássicas
referências do género como Camel e Eloy. Os Jesus the Snake
foram um suculento refresco de verão que ninguém recusou comungar. Uma
fantástica digressão estelar que nos catapultou tão para lá do lado eclipsado
lunar, atravessando a rochosa cintura de asteroides, driblando o abraço
gravitacional de solitários astros e empoeirando a alma nas coloridas e
fantasmagóricas nebulosas que vagueiam livremente pela eterna noite cósmica.
Uma mística guitarra de acordes meigos, um sombreado baixo de linhas fibrosas,
uma bateria tribalista de galope hipnótico, e mágicos teclados de melódicos
sirenes cósmicos, foram os ingredientes que, combinados, resultaram numa
maravilhosa odisseia celestial, de afago cerebral e essência instrumental.
Seguiam-se
mais uns velhos conhecidos e uma das minhas bandas nacionais favoritas: o
power-trio portuense Madmess. Firmados no palco secundário do SonicBlast,
este tridente sónico eclodiu numa atordoante e trepidante viagem galáctica de
destino desconhecido e regresso não garantido. Uma alucinógena propulsão pelos
alienígenas territórios do vertiginoso, efervescente e venenoso Heavy Psych
que nos cega de poeira astral. Um Sol em chamas vigiava-nos bem no alto dos
azulados céus, mas nem isso fez desmobilizar os muitos festivaleiros que
assistiam à psicotrópica combustão de Madmess. Sentimo-nos desenraizar
da gravidade terrestre, transcender e cavalgar – de rédeas firmemente
empunhadas e sentados nas costas deste cometa endiabrado – os desertos
ultraterrestres à alucinante boleia de uma guitarra intoxicante, um baixo
ziguezagueante, uma irrequieta bateria (que ainda nos brindou com um diabólico
solo), e uma rouquenha voz que surgiu de rompante naquele que é provavelmente o
tema mais célebre da banda “Stargazer”. Mas a surpresa estava reservada
para o final, e eu, sendo um intratável apaixonado pelos 70’s, assim que
identifiquei o contagiante riff da gaiteira “Hocus Pocus”, canção
originária dos holandeses Focus, senti um verdadeiro sismo emocional,
impossível de domesticar. Foi esta a forma perfeita de finalizar um concerto verdadeiramente
estonteante.
Carinhosa e legitimamente apelidados de banda residente do SonicBlast (ou
não fossem aposta pelo terceiro ano sucessivo), os rebeldes californianos Deathchant
são uma verdadeira força da natureza. Uma furiosa locomotiva sem travão que
tudo e todos abalroa sem moderação. Munidos de um musculoso, enérgico, eufórico
e acintoso Heavy Rock locomovido a um pujante coice Punk e
enegrecido por um endiabrado Proto-Metal, estes selváticos motards
de instrumentos empunhados avançaram impiedosamente sobre a plateia como que
uma colossal avalanche de pura adrenalina. Discípulos de Thin Lizzy e Motörhead,
esta banda natural da cidade de Los Angeles detonou o palco principal e sacudiu-nos
à frenética boleia de guitarras predatórias que poderosamente se manifestam em riffs
inflamantes, ciclónicos, despóticos e viciantes, uma desvairada bateria incansavelmente
metralhada a alta rotação, um filamentoso baixo de reverberação sufocante e
vocais de pele espinhosa, raivosa e chamejante.
Se no interior do palco tudo estremecia, fora dele o terramoto era real
e os corpos embatiam entre si. Um violento tornado que nos aspirava e rodopiava
freneticamente até que não restasse o mais microscópico sinal de lucidez. Deathchant
ao vivo é uma experiência tremendamente arrasadora e empolgante, para a qual
ninguém está preparado. Como é impossível remar contra esta potente torrente,
resta-nos render e enlouquecer perante tal fervor e robustez. E assim
aconteceu, se não podes vencer a tempestade, junta-te a ela.
Com um novíssimo (e caprichadíssimo) álbum intitulado ‘Retrieval’ que
ainda fumega (aqui imoderadamente reverenciado) debaixo do braço, os Sacri
Monti eram uma das bandas que mais me entusiasmava (re)ver. Era a terceira
vez que me encontrava em frente a eles (sempre na ressaca do lançamento de cada
um dos seus três álbuns), mas o meu coração comportava-se como se da primeira
se tratasse. O talentoso quinteto californiano entrou no palco secundário do
festival e não demorou a conquistar a populosa plateia que os vivenciava de
cabelos dançantes, sorriso golpeado no rosto e um intenso brilho no olhar
impossível de apagar. A sua sonoridade solarenga, imensamente agradável e com
odor a mar, que surfa as espumosas ondas de um majestoso, melódico, comovente e
ostentoso Progressive Rock de inspiração vintage, colorido por um
cheiroso, sensual, estival e lustroso Psychedelic Rock de radioso clima west-coast,
convida o ouvinte a perder-se e encontrar-se pelos labirínticos delírios das
suas veneráveis composições. Promovendo o seu mais recente trabalho e,
portanto, dedicando-lhe a maior fatia da sua irrepreensível performance, a
turma com domicílio na cidade costeira de San Diego sulfatou toda a
atmosfera com êxtase em estado musical, e quando surgiu a sublime “Desirable
Sequel” revirei os olhos, cravei os dentes nos lábios e quase que desfaleci
num súbito desmaio de prazer. De
sentidos enternecidos e olhar semi-selado, conduzimos pelas imaginárias
estradas repletas de curvas e contracurvas de Sacri Monti onde as
guitarras manobram enleantes acordes e gritam arrepiantes solos, o baixo enrijece
o riff base, a bateria trauteia com estonteante perícia, a voz assanhada,
embebida em sentimento, e o teclado ferve as estrelas e solta polposos mugidos.
Foi deles um dos concertos mais memoráveis desta edição.
Foi já com o Sol a meia
haste que uma das grandes bandas da minha vida surgiu no palco principal para
regozijo de uma povoada plateia que os aguardava com impaciência: os
dinamarqueses Causa Sui. Deles tudo esperava, mas o que recebi excedeu o
significado de tudo (como vou esclarecer mais à frente). Vi-os ao vivo pela
primeira vez no já longínquo verão espanhol de 2009 tocar as ‘Summer
Sessions’ quase na íntegra e dedicando-as ao mágico pôr-do-Sol que
recortava as montanhas rochosas de El Castell de Guadalest (Alicante).
Foi um daqueles concertos de uma vida, que nem o esquecimento se esquece de o
recordar. O reencontro surgiu bastantes anos mais tarde, em 2018, justamente no
SonicBlast, para levar comigo mais uma memória de longa duração. E agora,
volvidos seis anos, suspirava até onde o fôlego permitisse ao vê-los subir novamente
a palco. No público sentia-se que estávamos prestes a testemunhar um dos
momentos mais altos da presente edição do SonicBlast, e essa intuição
calada, mas ensurdecedora e generalizada, acabaria por se realizar. Com um
álbum fresquinho (ou quentinho, vá) para estrear ao vivo (‘From the Source’,
que aqui mereceu os mais elevados louvores da minha parte), os Causa
Sui depressa nos saciaram com um sumarento cocktail de aroma
tropical. Numa aprazível passeata por novos e velhos temas (onde destaco a
enfeitiçante e crepuscular “Red Valley”), esta apaixonante formação
nórdica fizera do recinto do SonicBlast uma virginal praia de areias
tostadas e um imenso mar azul-turquesa onde nos banhamos, relaxamos e
deleitamos do primeiro ao último tema. De ouvidos salivantes, consciência
dilatada, espírito arrebatado e olhar diluído nos efeitos multicoloridos e caleidoscópicos
que pulsavam no ecrã gigante, embalamos no seu bronzeado, edénico, profético e
serpenteado Psychedelic Rock de contagiante trote Zamrock, acentuadas
guinadas Progressivas, magnetismo Kraut e uma soberba orientação
jazzística. Fora do palco trocavam-se olhares e sorrisos, respirava-se boa
disposição e todos bronzeávamos com aquela dourada vibração. O paraíso aqui tão
perto. Até o alaranjado Sol poente se debruçara no firmamento oceânico para
assistir ao milagre de Causa Sui. Os corpos bamboleavam ao terapêutico som
de uma guitarra serpenteante, um baixo ondeante, uma bateria acrobática e um
teclado ataráxico. Havíamos alcançado o tão almejado nirvana e nada parecia
interromper esse profundo estádio de deslumbramento. Até que o Jonas Munk
se aproximou do microfone e disse: “Nuno this one is for you!”. A
minha respiração travou, a minha pele arrepiou e o meu coração quase parou. Os Causa
Sui estavam mesmo a dedicar-me a mágica “Soledad” e não foi fácil
conter as lágrimas enquanto, que aturdido, de emoções em constante erupção e
imensamente agradecido, tentava saborear todos os suculentos detalhes da
canção. Foi um dos momentos musicais mais especiais da minha vida. E se o
concerto já havia tocado as costuras fronteiriças da perfeição, depois disto
elevo-o mesmo ao estatuto de divindade. Não foi nada fácil despertar deste
sonho acordado. Ainda hoje me sinto a gravitar nele.
Seguiam-se os já históricos Colour Haze e a sua imersiva e colorida chuva
de estrelas. Aquela era já a minha sexta vez que os vivenciava ao vivo, mas
ainda partilhava muito do entusiasmo que sentira na primeira (em 2009). O
recinto rebentava pelas costuras com praticamente todas as suas áreas lotadas
de pessoas, e foram milhares a testemunhar na primeira pessoa mais uma
performance inatacável do quarteto germânico. Defendo que, pelo menos por uma
vez na vida, toda as pessoas deveriam experienciar Colour Haze ao vivo.
O seu psicadelismo delicado, transcendente, edénico e requintado – repleto de ínfimos
detalhes técnicos que se escondem por detrás de cada esquina das suas opulentas
composições – causa no ser humano um perfeito estádio de ataraxia e consagração
espiritual, que o conserva num etéreo universo de fantasia, à margem da realidade.
De resto, aquela tonalidade da guitarra majestosamente dedilhada pelo Stefan
Koglek é das coisas mais afrodisíacas que se podem encontrar e comungar no
universo musical. Também a bateria – disposta de perfil em palco para que todos
possam assistir, sem pestanejar, àquela animalesca (no sentido elogioso da
palavra) maestria de Manfred Merwald – de soberba orientação jazzística,
tricota estas faustosas peças musicais de alta costura com fina leveza e admirável
destreza, o baixo engrossa e anoitece todas as matizadas e floridas incursões
da guitarra, os teclados emprestam toda uma aura onírica e quimérica aos temas,
enquanto que a voz sóbria e sedosa percorre, levemente e de pés descalços, as
canções ternas, romanescas e acolchoadas de Colour Haze. Foi fácil cair
na tentação de temas irresistíveis como “Transformation” (uma das minhas
favoritas) e “Aquamaria”, e a banda – juntamente com o público – perdera
as coordenadas do espaço-tempo, fazendo com que a mesma não conseguisse incluir
a obrigatória “Love” (foi, de resto, a primeira vez que não a ouvira
tocar esse hino) e o “imprevisível” final do concerto foi visto (tanto pela banda
como pelo público) como uma desagradável surpresa. Pois queríamos todos mais,
muito mais. Uma castração de endorfinas para quem não vive sob o domínio da
ampulheta. Apesar da banda não ter sabido gerir a baliza do seu tempo em palco,
presenteou-nos com uma performance verdadeiramente deslumbrante.
Este último
dia de festival principiava com a merecida aparição dos portuenses Great
Fool, uma jovem banda nacional, com muito potencial, e um impactante álbum
de estreia (aqui descrito) nascido este ano, impaciente por incendiar e
turbilhonar o palco 3. E assim foi: este enérgico quarteto, que ergue bem alto o
punho da revolução, bombardeou-nos com um ousado, electrizante e apimentado Heavy
Psych num desavergonhado flirt com um fogoso, ritmado e aparatoso Blues
Rock de lascivo balanço Boogie. Imanizados pela picante, irrequieta
e cativante música de Great Fool, iam surgindo cada vez mais pessoas no
interior da grande tenda que escudava o palco e a respectiva plateia de um Sol tórrido
e por ali permaneciam nesta agradável companhia sonora. Numa simbiótica combinação
entre a livre expressividade de um vocalista de voz felina, os vistosos serpenteios
de uma embriagada guitarra que vomitava um psicadelismo multicolorido, os enleantes
bailados de um baixo groovy e a fogosidade rítmica de uma bateria
buliçosa, os Great Fool fecharam o seu “tempo de antena” com uma
exibição personalizada – onde a sua vistosa presença em palco foi marcante – que
não deixou ninguém indiferente. No final, podiam ouvir-se elogios passar de boca
em boca. A jovem banda da cidade do Porto saía de Vila Praia de Âncora
com muitos e novos seguidores.
Seguia-se uma
das propostas mais exóticas e arrojadas desta edição do SonicBlast: o
trio turco liderado pela extravagante vocalista Gaye Su Akyol. Quando
confrontada com a enigmática, seráfica e provocante sonoridade da banda sediada
na cidade de Istambul, a crescente plateia que se perfilava nas
imediações do palco principal não demorou a despir-se de timidez e a dança-la
com libertadora exuberância e fascinada entrega. Reproduzindo um magnetizante, condimentado,
açucarado e serpenteante Anatolian Rock com generosas doses electrónicas,
Gaye Su Akyol teve em todos os presentes, o mesmo poder hipnotizante que
a encantadora dança da flauta indiana exerce sobre a serpente Naja. De cabeças
baloiçantes, ombros saltitantes, braços levitados num ziguezagueio em direcção
ao Sol e pés a martelar o solo, foi fácil deixarmo-nos diluir nesta intensa sedução
turca. Uma bateria ritualista de absorventes ritmos tribais, uma messiânica guitarra
de chamativa caligrafia turca, um teclado embrulhado numa alquimia electrónica
e a enfeitiçante voz cantada na sua língua nativa: foram estes os quatro responsáveis
pela boa disposição que se viveu na cálida tarde deste derradeiro dia de SonicBlast.
Um grande bazar de caleidoscópico psicadelismo onde nos perdemos e
encontramos. Para finalizar num estilo rockeiro, ainda tivemos direito a
uma agitada cover do mítico Erkin Koray (influente guitarrista/vocalista
turco que falecera no passado ano). Gaye Su Akyol foi claramente uma
aposta ganha.
De texanas calçadas
entrava no palco secundário um dos mais importantes bastiões da história do Doom
Metal: os grandes The Obsessed. Depois de resolvidos alguns
problemas técnicos iniciais que embaciaram a definição do som (principalmente
das guitarras e voz), a banda norte-americana liderada pelo carismático Scott
"Wino" Weinrich assumiu a responsabilidade de ser o único
representante do lado mais tradicional de um opressivo, combativo, possante e
altivo Doom Metal nesta edição do SonicBlast, e brindou todos os seus
discípulos com uma vil descarga de pesada negritude às costas de duas imponentes
guitarras que hasteiam bem alto gloriosos, epidémicos, despóticos e poderosos riffs,
um baixo sisudo de monolítica, sombreada, resistente e granítica reverberação, uma
bateria incisiva que se desdobrava em velocidades fortemente contrastadas, e
uma voz decrépita, diabrina e melódica, de coloração acinzentada e entoação
intrigante. A plateia abanava pesada e lentamente a cabeça na instintiva
resposta à massiva negritude derramada pelas colunas. Os The Obsessed pendularam
entre velhos e novos temas, ficando a faltar a “Lost Sun Dance” (canção
originária do portentoso álbum de estreia de Spirit Caravan, um outro
velho projecto de Wino) que a banda costuma levar na bagagem. Foi um concerto satisfatório,
mas a luz do dia não beneficiou a vampírica sonoridade de uma banda que se sente
bem mais confortável em expor-se à desmaiada luz lunar e esconder-se dentro de
um sarcófago enquanto lá fora reina a amarelecida luz solar.
E se a
sonoridade dos The Obsessed não tirou qualquer benefício da hora
demasiado diurna em que foi levada a palco, a de Brant Bjork posta em
prática às 19h da tarde, sob os fogosos e lustrosos raios solares, foi de uma perfeita
comunhão. Na companhia do icónico Mario Lalli no baixo (figura de uma importância
decisiva no nascimento e desenvolvimento do Desert Rock), Brant Bjork
subiu ao palco principal sob a forma de power-trio. Esta era a terceira
vez que eu participava na sua transformadora homilia desértica (a primeira teve
lugar no já extinto Porto-Rio em 2008), mas o depósito do entusiasmo estava
atestado. Com residência na árida cidade californiana de Palm Desert, o lendário
Brant Bjork (baterista original dos seminais Kyuss) desenrolou todo
um tapete arenoso no nosso imaginário, onde imponentes saguaros floridos se
espreguiçavam na vertiginosa direcção dos céus cristalinos, verdejantes palmeiras meneavam
à boleia da brisa do deserto, serpentes surfavam as finas areias das dunas, e
um Sol grávido de luzência seráfica nada deixava à sombra. Com um skate
debaixo dos nossos pés, percorremos os sinuosos, reptilianos, morenos e oleosos
riffs – de forte odor canábico – ao serviço do seu viciante,
bem-disposto e vibrante Low Desert Punk. Este tridente radical composto
por uma guitarra polposa, enleante e flexuosa, uma bateria funky de
ritmicidade entretida, relaxada e descomplicada, um baixo de groove magnético,
denso e elástico, e uma límpida e ensolarada voz de pele bronzeada, ofereceu-nos
uma das mais notáveis performances da presente edição. Verdadeira mescalina via
auditiva. Fora do palco, os corpos transpirados luziam numa detida e lasciva dança.
E foi ao som de alguns clássicos retirados do sagrado ‘Jalamanta’
(amém!) como “Too Many Chiefs... Not Enough Indians” e “Lazy
Bones/Automatic Fantastic”, assim como da “Let The Truth Be Known” reproduzida
ao vivo com uma nova roupagem (entre outros), que este trio nascido e crescido no
deserto de Mojave nos namorou do primeiro ao último segundo da sua irresistível
actuação.
Os titânicos High On Fire estavam aí e o público cimentava-se e estendia-se
no interior do recinto até onde a vista podia alcançar. Um imenso mar de gente de
coração a galope e olhar sedento por experienciar um dos concertos mais
intensos da sua vida alongava-se da entrada do recinto até ao gradeamento
frontal dos palcos. E assim foi: o incisivo tridente norte-americano – liderado
pelo emblemático Matt Pike (Sleep) – soltou um enfurecido e
desgovernado bulldozer na nossa direcção que não deixou ninguém ileso. Com
o seu último álbum ‘Cometh the Storm’ ainda sob brasas (review aqui),
os High on Fire não tiraram o pé do acelerador durante toda a sua
demolidora performance. Foram, de resto, verdadeiros exterminadores em palco. Autênticos
lança-chamas que todos carbonizaram com o seu impiedoso tridente sonoro composto
por um mastodôntico, intoxicante, euforizante e ciclónico Stoner Metal
que ocasionalmente se enlameia nos nimbosos pântanos do Sludge Metal, e
um poderoso, agressivo, corrosivo e raivoso Heavy Metal de vertiginosa
pedalada Punk. Completamente abalroados, sacudidos e mastigados pela sua
eruptiva, escaldante, excitante e ofensiva musicalidade, todos nos banhámos no
interior deste vulcão em salivante erupção. As cabeças rodopiavam furiosamente,
os corpos embatiam violentamente entre si, viam-se espasmos de adrenalina,
copos de cerveja arremessados e corpos naufragados, levados na crista da revoltosa
onda humana. A loucura estava instalada e nada parecia conseguir deter aquela
locomotiva endiabrada – carburada a fogosa ferocidade – chamada High On Fire.
As monolíticas paredes de colunas e amplificadores derretiam com tamanhas potência e ardência. Nesta
tempestade perfeita que nos desenraizara e levara na garganta dos remoinhos que tudo e todos
varriam, rugia uma voz felina de temperamento raivoso e tez corrosiva,
rouquenha e urticante, trovejava uma montanhosa guitarra de ventosos,
gordurosos, opressivos, e tormentosos riffs de onde ziguezagueavam
apressados, lampejantes, ácidos e trepidantes solos, bafejava pesadamente um
baixo obeso de linhas quentes, tensas, densas e sufocantes, e crepitava com
desumana explosividade uma enérgica bateria de açoitadas retumbantes,
explosivas, incisivas e fulminantes. No final estávamos todos caídos, combalidos
e de mandibulas deslocadas. Os culpados? Todos apontámos o dedo aos High On
Fire.
Os Wine
Lips foram – para mim – a grande surpresa do SonicBlast (isto, exclusivamente
devido ao facto de não estar familiarizado com a banda, à qual dediquei apenas
uma rápida e descomprometida escuta, cheia de solavancos, assim que foram
oficialmente anunciados para o festival). Vi-me sem expectativas no meio de
centenas de pessoas inquietas em frente ao palco principal, enquanto que quatro
rapazes de óculos de sol surgiam na noite em frente a um ecrã que exibia o acelerado crescimento de fungos num loop doentio, e acabei inteiramente rendido ao
frenético festim que se seguiu. Confesso que já tinha saudades de ser
surpreendido pela positiva por uma banda desconhecida, e, no caso de Wine
Lips, vivi uma mudança drástica ao aproximar-me do palco apático e com as
mãos enterradas nos bolsos e acabar o concerto com a testa a gotejar suor, a roupa
amarrotada, os pés espezinhados e completamente estafado de tanto dançar. Em
poucos segundos, estes canadianos colocaram-me numa destravada, animada e vertiginosa
montanha-russa, sem alavanca de emergência, da qual só consegui sair no final
do concerto. De instrumentos apontados a um irreverente, estético, dinâmico, e
empolgante Garage Rock desbravado à boa moda australiana e ensopado num electrizante,
propulsivo, ácido e trepidante Heavy Psych de toxicidade a perder de
vista e gaseificado por uma crocante e chamejante distorção, os Wine Lips
foram uma imparável centrifugadora que colocara à prova a firmeza dos alicerces
que sustentam a nossa sanidade mental. Mergulhada nesta escaldante
efervescência de um psicadelismo febril, a plateia reagia como podia perante
aquela excitante combustão de adrenalina. Incontáveis corpos eram levados acima
da palpitante massa humana pelas palmas das mãos e os seguranças em frente ao
palco tiveram seguramente uma das noites mais ocupadas das suas vidas profissionais
ao resgatarem um sem número de náufragos que faziam do CrowdSurf a única
forma de lidar com toda aquela saturada combustão de intensa euforia em estado
musical. Todos saltavam, todos sorriam, todos desbundavam, todos alucinavam ao
buliçoso som deste convulso quarteto que a todos fez queimar calorias.
No dia seguinte regressei a casa com aquele sentimento tão familiar – e transversal a toda a comunidade SonicBlast – que se renova anualmente: o SonicBlast é mesmo o lugar onde mais desejamos estar e assim que o mesmo termina sentimo-nos invadidos por uma crescente vontade de a ele regressar. Para além da experiência dos 14 concertos acima transcrita em palavras, assisti, parcialmente, a mais um punhado de outros, mas sem o comprometimento necessário para que pudesse traduzi-los com a precisão que cada descrição me merece, e perdi ainda, com algum arrependimento, outras 2/3 bandas, pois nem sempre a expectativa (teoria) e a realidade (prática) caminham de mãos dadas. Nesses dias de SonicBlast deu ainda para visitar a praia (e constatar, com admiração, que a água do mar não estava tão fria como é habitual), para umas reparadoras corridas matinais até à freguesia vizinha de Moledo (que tantas e tantas vívidas memórias ainda preserva) pela paradisíaca costa atlântica, e uns passeios por Vila Praia de Âncora, pois tudo isto faz também parte da experiência SonicBlast. Um especial agradecimento ao Ricardo e à Telma pela reiterada confiança (é com inefável vaidade e desmesurado orgulho que há muito visto o traje de media partner daquele que é o meu festival de eleição) e ao Bruno Pereira (com os seus olhos de lince) pela sua impressionante colaboração fotográfica com o El Coyote. Termino como comecei: a 13ª edição já tem data para acontecer (7, 8 e 9 de Agosto de 2025) e os primeiros bilhetes a um preço bastante reduzido já se encontram em distribuição. Ainda falta muito?
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