domingo, 18 de agosto de 2024

Review: 🌊 SonicBlast 2024 🌊

Agora que a poeira da emoção já assentou e as palavras começam a surgir à tona da razão, fica mais fácil (d)escrever com a lucidez necessária “tudo” o que experienciei nesta tão especial 12ª edição do festival SonicBlast (a 11ª edição consecutiva em que estive presente). Pela primeira vez – desde que embarco, de forma ininterrupta, nesta anual romaria musical (estreei-me no já longínquo verão de 2012) – marquei presença no dia zero do festival (warm-up), mas admito que o mesmo foi passado capturado num inescapável ambiente de gratificante confraternização com os tantos e tantos rostos familiares com que me ia cruzando pelo recinto, remetendo a música ao vivo que explodia com vibrante comoção no palco 3 para segundo plano. A minha insaciável paixão pela música trouxe-me (e continua a trazer) algumas das mais cativantes amizades que conservo carinhosamente, e o SonicBlast é, sem dúvida, o ponto de encontro onde socializo pessoalmente com grande parte delas. Os estrelados céus de nuvens varridas e enxotadas deixavam em nós a inabalável convicção de que estes quatro dias seriam passados debaixo de um desabrigado e resplandecente Sol de bafo quente, e assim se confirmou: o SonicBlast foi mesmo presenteado com um dos melhores climas da sua história (dias quentes e noites ventiladas por uma leve e refrescante brisa de salgada fragância oceânica), convidando-nos a banhar o corpo no mar enquanto que os amplificadores permaneciam desligados e os instrumentos remetidos a um efémero descanso, e a mergulhar o lábio superior no copo de transbordante cerveja gelada enquanto que as ondas da reverberação psicotrópica se desmoronavam na costa da nossa espiritualidade.

Se o dia zero havia sido fértil no que diz respeito a inúmeros encontros casuais com pessoas que me são familiares, o primeiro dia deste SonicBlast foi ainda mais prendado nesse sentido. Divagando pela zona de restauração, pelos aglomerados de sedentos que aguardavam de copo vazio nas populosas filas de acesso aos bares e por entre os incontáveis corpos movediços firmados em frente aos palcos, encontrava, como diria o saudoso Zeca Afonso, “em cada esquina um amigo”, mas sem nunca perder o foco musical. E para este primeiro dia, tinha duas bandas engatilhadas no auge da minha ambição: a tão ansiada estreia em Black Mountain (conheci-os algures entre 2006/2007 e o fascínio pela banda foi instantâneo) e a sempre lucrativa revisita aos frondosos jardins sonoros de Graveyard. Mas este dia ficaria, acima de tudo, marcado pela trágica notícia do falecimento de Dave Sweetapple (baixista de Witch, banda que – na companhia do mesmo – esteve presente na 10ª edição do festival). As merecidas homenagens acabariam por multiplicar-se nesse e nos dois dias seguintes, com diversas bandas a dedicarem-lhe as respectivas actuações e a épica “Seer” (a alma mater dos Witch) a ser protagonista no som ambiente do SonicBlast.

Black Mountain

Foi já na agradável companhia de um Sol crepuscular que os canadianos Black Mountain subiram ao palco principal e saudaram a crescente plateia à hipnótica boleia do tema introdutório “Mothers of the Sun”, imediatamente reconhecido e aplaudido. Conheci a banda há quase duas décadas e a mesma desperta hoje em mim um doce sentimento nostálgico sempre que a escuto, portanto, experienciá-la pela primeiríssima vez ao vivo era algo muito especial que me deixava com um inapagável sorriso parvo no rosto. O bafo morno do Sol entrelaçava-se na fresca e húmida brisa trazida pelo oceano, enquanto que o magnetizante, lânguido, açucarado e deslumbrante Psychedelic Rock com vista desabrigada para o enfeitiçante, arejado e viajante Space Rock de mãos dadas a um afável, dançante, embriagante e adorável Indie Rock de inclinação radiofónica deixava o ouvinte petrificado num extasiante estádio anestésico que o embrulhara do primeiro ao derradeiro tema. Velhos temas como “Stormy High”, “Wucan” e “Druganaut” envolveram e revolveram o público num generalizado estado de transe só interrompido com a chegada do desconfortável silêncio que se lhes seguiu. Os corpos baloiçavam e levitavam – mergulhados numa profunda hipnose – ao som de uma guitarra flexuosa, um sintetizador futurista, uma bateria esponjosa, um baixo ondulante e duas vozes (uma masculina e outra feminina) que se entrançavam num misto de sensuais sussurros caramelizados e uivos de uma luzência virginal capazes de engravidar a Lua. Black Mountain presentearam-nos com uma performance verdadeiramente atraente, deleitosa e absorvente que nos deixara sem chão e com todo um céu de infindável fundura para explorar. Não foi fácil acordar deste sonho sublimemente musicado.

Graveyard

Debaixo de um negro e acetinado manto nocturno, os largamente aguardados Graveyard subiram a palco, abafados por um barulhento aplauso de grandes louvores e gritos encorajadores. Ainda os carismáticos músicos suecos agarravam e calçavam os seus instrumentos, e fora do palco o pulsante entusiasmo já era palpável. Foi num perfeito equilíbrio entre melosas baladas e fogosas galopadas que a turma escandinava derreteu e inflamou os nossos corações. Com uma previsível e compreensível aposta bem vincada nos novos temas que compõem o seu mais recente álbum ‘6’ (aqui trazido, desconstruído e elogiado), foram mesmo os poucos clássicos executados em palco como “Ain’t Fit To Live Here”, “Hisingen Blues” e “The Siren” desta banda que faz do harmonioso, refinado, adornado e lustroso Classic Rock de florida moldura setentista com a inquebrável fibra do atlético Hard Rock e a resinosa melosidade do afrodisíaco Blues a sua bandeira, a colher os mais vistosos acessos de empolgamento vividos fora do palco. Os rugidos queimantes, melódicos e urticantes do Joakim Nilsson aqueciam-nos naquela fresca noite minhota, enquanto que as torneadas guitarras, o pulsante baixo e a acrobática bateria baloiçavam o nosso corpo invertebrado e climatizavam o nosso espírito rendido. Ainda assim, considerei um tanto enfadonho que a banda se tenha perdido no prolongamento de temas – em formato jam – ao invés de acrescentar outros à sua setlist. Não está nada fácil manter acesa esta já frágil chama de esperança que um dia possa testemunhar Graveyard a executar ao vivo temas do seu álbum de estreia (que é, de longe, o meu favorito, mas a banda parece querer engavetá-lo no esquecimento). Ainda assim, Graveyard ao vivo é sempre uma experiência enriquecedora, tal é o seu talento e a incrível simbiose instrumental conversada em palco. Fora dele, o público pareceu não ficar inteiramente saciado com o que nos fora oferecido por uma das bandas mais queridas desta 12ª edição do festival.

Seguia-se o segundo dia de festival e eram muitas as iguarias musicais que eu queria degustar. Começando pelo psicadelismo veraneio de Jesus the Snake, saltitando até à psicotrópica explosividade de Madmess, sobreaquecendo os motores ao impiedoso som dos combativos Deathchant, banhar-me nas diamantinas águas dos refrescantes Sacri Monti, bronzear a pele na desprotegida exposição aos radiosos Causa Sui e morder os lábios ao nirvânico som de Colour Haze. Eram estes os planos para o meu segundo dia nas areias do SonicBlast. De destacar que, no final deste dia, a Garboyl Lives anunciava que o festival estava oficialmente esgotado.

Jesus the Snake

Com a responsabilidade de abrir este novo dia de SonicBlast, os minhotos Jesus the Snake subiram ao terceiro palco do festival e brindaram todos os presentes com uma arejada, apaladada e revitalizante brisa que avivou os rostos corados e suados de todos aqueles que se refugiavam no interior da tenda que engole o palco 3. Velejando pelas tranquilas águas do infindável oceano cósmico, este quinteto português recolheu a âncora e viajou calmamente pelas paradisíacas praias do lenitivo, etéreo e meditativo Psychedelic Rock de deslumbrante sotaque Pink Floyd’eano e do fascinante, ondulante e radioso Progressive Rock de indiscreta inspiração colhida em clássicas referências do género como Camel e Eloy. Os Jesus the Snake foram um suculento refresco de verão que ninguém recusou comungar. Uma fantástica digressão estelar que nos catapultou tão para lá do lado eclipsado lunar, atravessando a rochosa cintura de asteroides, driblando o abraço gravitacional de solitários astros e empoeirando a alma nas coloridas e fantasmagóricas nebulosas que vagueiam livremente pela eterna noite cósmica. Uma mística guitarra de acordes meigos, um sombreado baixo de linhas fibrosas, uma bateria tribalista de galope hipnótico, e mágicos teclados de melódicos sirenes cósmicos, foram os ingredientes que, combinados, resultaram numa maravilhosa odisseia celestial, de afago cerebral e essência instrumental.

Madmess

Seguiam-se mais uns velhos conhecidos e uma das minhas bandas nacionais favoritas: o power-trio portuense Madmess. Firmados no palco secundário do SonicBlast, este tridente sónico eclodiu numa atordoante e trepidante viagem galáctica de destino desconhecido e regresso não garantido. Uma alucinógena propulsão pelos alienígenas territórios do vertiginoso, efervescente e venenoso Heavy Psych que nos cega de poeira astral. Um Sol em chamas vigiava-nos bem no alto dos azulados céus, mas nem isso fez desmobilizar os muitos festivaleiros que assistiam à psicotrópica combustão de Madmess. Sentimo-nos desenraizar da gravidade terrestre, transcender e cavalgar – de rédeas firmemente empunhadas e sentados nas costas deste cometa endiabrado – os desertos ultraterrestres à alucinante boleia de uma guitarra intoxicante, um baixo ziguezagueante, uma irrequieta bateria (que ainda nos brindou com um diabólico solo), e uma rouquenha voz que surgiu de rompante naquele que é provavelmente o tema mais célebre da banda “Stargazer”. Mas a surpresa estava reservada para o final, e eu, sendo um intratável apaixonado pelos 70’s, assim que identifiquei o contagiante riff da gaiteira “Hocus Pocus”, canção originária dos holandeses Focus, senti um verdadeiro sismo emocional, impossível de domesticar. Foi esta a forma perfeita de finalizar um concerto verdadeiramente estonteante.

Deathchant

Carinhosa e legitimamente apelidados de banda residente do SonicBlast (ou não fossem aposta pelo terceiro ano sucessivo), os rebeldes californianos Deathchant são uma verdadeira força da natureza. Uma furiosa locomotiva sem travão que tudo e todos abalroa sem moderação. Munidos de um musculoso, enérgico, eufórico e acintoso Heavy Rock locomovido a um pujante coice Punk e enegrecido por um endiabrado Proto-Metal, estes selváticos motards de instrumentos empunhados avançaram impiedosamente sobre a plateia como que uma colossal avalanche de pura adrenalina. Discípulos de Thin Lizzy e Motörhead, esta banda natural da cidade de Los Angeles detonou o palco principal e sacudiu-nos à frenética boleia de guitarras predatórias que poderosamente se manifestam em riffs inflamantes, ciclónicos, despóticos e viciantes, uma desvairada bateria incansavelmente metralhada a alta rotação, um filamentoso baixo de reverberação sufocante e vocais de pele espinhosa, raivosa e chamejante.  Se no interior do palco tudo estremecia, fora dele o terramoto era real e os corpos embatiam entre si. Um violento tornado que nos aspirava e rodopiava freneticamente até que não restasse o mais microscópico sinal de lucidez. Deathchant ao vivo é uma experiência tremendamente arrasadora e empolgante, para a qual ninguém está preparado. Como é impossível remar contra esta potente torrente, resta-nos render e enlouquecer perante tal fervor e robustez. E assim aconteceu, se não podes vencer a tempestade, junta-te a ela.

Sacri Monti

Com um novíssimo (e caprichadíssimo) álbum intitulado ‘Retrieval’ que ainda fumega (aqui imoderadamente reverenciado) debaixo do braço, os Sacri Monti eram uma das bandas que mais me entusiasmava (re)ver. Era a terceira vez que me encontrava em frente a eles (sempre na ressaca do lançamento de cada um dos seus três álbuns), mas o meu coração comportava-se como se da primeira se tratasse. O talentoso quinteto californiano entrou no palco secundário do festival e não demorou a conquistar a populosa plateia que os vivenciava de cabelos dançantes, sorriso golpeado no rosto e um intenso brilho no olhar impossível de apagar. A sua sonoridade solarenga, imensamente agradável e com odor a mar, que surfa as espumosas ondas de um majestoso, melódico, comovente e ostentoso Progressive Rock de inspiração vintage, colorido por um cheiroso, sensual, estival e lustroso Psychedelic Rock de radioso clima west-coast, convida o ouvinte a perder-se e encontrar-se pelos labirínticos delírios das suas veneráveis composições. Promovendo o seu mais recente trabalho e, portanto, dedicando-lhe a maior fatia da sua irrepreensível performance, a turma com domicílio na cidade costeira de San Diego sulfatou toda a atmosfera com êxtase em estado musical, e quando surgiu a sublime “Desirable Sequel” revirei os olhos, cravei os dentes nos lábios e quase que desfaleci num súbito desmaio de prazer.  De sentidos enternecidos e olhar semi-selado, conduzimos pelas imaginárias estradas repletas de curvas e contracurvas de Sacri Monti onde as guitarras manobram enleantes acordes e gritam arrepiantes solos, o baixo enrijece o riff base, a bateria trauteia com estonteante perícia, a voz assanhada, embebida em sentimento, e o teclado ferve as estrelas e solta polposos mugidos. Foi deles um dos concertos mais memoráveis desta edição.

Causa Sui

Foi já com o Sol a meia haste que uma das grandes bandas da minha vida surgiu no palco principal para regozijo de uma povoada plateia que os aguardava com impaciência: os dinamarqueses Causa Sui. Deles tudo esperava, mas o que recebi excedeu o significado de tudo (como vou esclarecer mais à frente). Vi-os ao vivo pela primeira vez no já longínquo verão espanhol de 2009 tocar as ‘Summer Sessions’ quase na íntegra e dedicando-as ao mágico pôr-do-Sol que recortava as montanhas rochosas de El Castell de Guadalest (Alicante). Foi um daqueles concertos de uma vida, que nem o esquecimento se esquece de o recordar. O reencontro surgiu bastantes anos mais tarde, em 2018, justamente no SonicBlast, para levar comigo mais uma memória de longa duração. E agora, volvidos seis anos, suspirava até onde o fôlego permitisse ao vê-los subir novamente a palco. No público sentia-se que estávamos prestes a testemunhar um dos momentos mais altos da presente edição do SonicBlast, e essa intuição calada, mas ensurdecedora e generalizada, acabaria por se realizar. Com um álbum fresquinho (ou quentinho, vá) para estrear ao vivo (‘From the Source’, que aqui mereceu os mais elevados louvores da minha parte), os Causa Sui depressa nos saciaram com um sumarento cocktail de aroma tropical. Numa aprazível passeata por novos e velhos temas (onde destaco a enfeitiçante e crepuscular “Red Valley”), esta apaixonante formação nórdica fizera do recinto do SonicBlast uma virginal praia de areias tostadas e um imenso mar azul-turquesa onde nos banhamos, relaxamos e deleitamos do primeiro ao último tema. De ouvidos salivantes, consciência dilatada, espírito arrebatado e olhar diluído nos efeitos multicoloridos e caleidoscópicos que pulsavam no ecrã gigante, embalamos no seu bronzeado, edénico, profético e serpenteado Psychedelic Rock de contagiante trote Zamrock, acentuadas guinadas Progressivas, magnetismo Kraut e uma soberba orientação jazzística. Fora do palco trocavam-se olhares e sorrisos, respirava-se boa disposição e todos bronzeávamos com aquela dourada vibração. O paraíso aqui tão perto. Até o alaranjado Sol poente se debruçara no firmamento oceânico para assistir ao milagre de Causa Sui. Os corpos bamboleavam ao terapêutico som de uma guitarra serpenteante, um baixo ondeante, uma bateria acrobática e um teclado ataráxico. Havíamos alcançado o tão almejado nirvana e nada parecia interromper esse profundo estádio de deslumbramento. Até que o Jonas Munk se aproximou do microfone e disse: “Nuno this one is for you!”. A minha respiração travou, a minha pele arrepiou e o meu coração quase parou. Os Causa Sui estavam mesmo a dedicar-me a mágica “Soledad” e não foi fácil conter as lágrimas enquanto, que aturdido, de emoções em constante erupção e imensamente agradecido, tentava saborear todos os suculentos detalhes da canção. Foi um dos momentos musicais mais especiais da minha vida. E se o concerto já havia tocado as costuras fronteiriças da perfeição, depois disto elevo-o mesmo ao estatuto de divindade. Não foi nada fácil despertar deste sonho acordado. Ainda hoje me sinto a gravitar nele.

Colour Haze

Seguiam-se os já históricos Colour Haze e a sua imersiva e colorida chuva de estrelas. Aquela era já a minha sexta vez que os vivenciava ao vivo, mas ainda partilhava muito do entusiasmo que sentira na primeira (em 2009). O recinto rebentava pelas costuras com praticamente todas as suas áreas lotadas de pessoas, e foram milhares a testemunhar na primeira pessoa mais uma performance inatacável do quarteto germânico. Defendo que, pelo menos por uma vez na vida, toda as pessoas deveriam experienciar Colour Haze ao vivo. O seu psicadelismo delicado, transcendente, edénico e requintado – repleto de ínfimos detalhes técnicos que se escondem por detrás de cada esquina das suas opulentas composições – causa no ser humano um perfeito estádio de ataraxia e consagração espiritual, que o conserva num etéreo universo de fantasia, à margem da realidade. De resto, aquela tonalidade da guitarra majestosamente dedilhada pelo Stefan Koglek é das coisas mais afrodisíacas que se podem encontrar e comungar no universo musical. Também a bateria – disposta de perfil em palco para que todos possam assistir, sem pestanejar, àquela animalesca (no sentido elogioso da palavra) maestria de Manfred Merwald – de soberba orientação jazzística, tricota estas faustosas peças musicais de alta costura com fina leveza e admirável destreza, o baixo engrossa e anoitece todas as matizadas e floridas incursões da guitarra, os teclados emprestam toda uma aura onírica e quimérica aos temas, enquanto que a voz sóbria e sedosa percorre, levemente e de pés descalços, as canções ternas, romanescas e acolchoadas de Colour Haze. Foi fácil cair na tentação de temas irresistíveis como “Transformation” (uma das minhas favoritas) e “Aquamaria”, e a banda – juntamente com o público – perdera as coordenadas do espaço-tempo, fazendo com que a mesma não conseguisse incluir a obrigatória “Love” (foi, de resto, a primeira vez que não a ouvira tocar esse hino) e o “imprevisível” final do concerto foi visto (tanto pela banda como pelo público) como uma desagradável surpresa. Pois queríamos todos mais, muito mais. Uma castração de endorfinas para quem não vive sob o domínio da ampulheta. Apesar da banda não ter sabido gerir a baliza do seu tempo em palco, presenteou-nos com uma performance verdadeiramente deslumbrante.

O terceiro e derradeiro dia de SonicBlast estava aí. Nesta recta final do festival tinha paragens programadas para presenciar a combustão revolucionária dos “nossos” Great Fool, a sedução persa dos Gaye Su Akyol, a negrura belicosa de The Obsessed, para beber um trago de mescalina com Brant Bjork Trio, tomar um fervente banho de lavaredas cuspidas pelos High On Fire, e (esta imprevista) participar activamente no faiscante frenesim dos canadianos Wine Lips.


Great Fool

Este último dia de festival principiava com a merecida aparição dos portuenses Great Fool, uma jovem banda nacional, com muito potencial, e um impactante álbum de estreia (aqui descrito) nascido este ano, impaciente por incendiar e turbilhonar o palco 3. E assim foi: este enérgico quarteto, que ergue bem alto o punho da revolução, bombardeou-nos com um ousado, electrizante e apimentado Heavy Psych num desavergonhado flirt com um fogoso, ritmado e aparatoso Blues Rock de lascivo balanço Boogie. Imanizados pela picante, irrequieta e cativante música de Great Fool, iam surgindo cada vez mais pessoas no interior da grande tenda que escudava o palco e a respectiva plateia de um Sol tórrido e por ali permaneciam nesta agradável companhia sonora. Numa simbiótica combinação entre a livre expressividade de um vocalista de voz felina, os vistosos serpenteios de uma embriagada guitarra que vomitava um psicadelismo multicolorido, os enleantes bailados de um baixo groovy e a fogosidade rítmica de uma bateria buliçosa, os Great Fool fecharam o seu “tempo de antena” com uma exibição personalizada – onde a sua vistosa presença em palco foi marcante – que não deixou ninguém indiferente. No final, podiam ouvir-se elogios passar de boca em boca. A jovem banda da cidade do Porto saía de Vila Praia de Âncora com muitos e novos seguidores.

Gaye Su Akyol

Seguia-se uma das propostas mais exóticas e arrojadas desta edição do SonicBlast: o trio turco liderado pela extravagante vocalista Gaye Su Akyol. Quando confrontada com a enigmática, seráfica e provocante sonoridade da banda sediada na cidade de Istambul, a crescente plateia que se perfilava nas imediações do palco principal não demorou a despir-se de timidez e a dança-la com libertadora exuberância e fascinada entrega. Reproduzindo um magnetizante, condimentado, açucarado e serpenteante Anatolian Rock com generosas doses electrónicas, Gaye Su Akyol teve em todos os presentes, o mesmo poder hipnotizante que a encantadora dança da flauta indiana exerce sobre a serpente Naja. De cabeças baloiçantes, ombros saltitantes, braços levitados num ziguezagueio em direcção ao Sol e pés a martelar o solo, foi fácil deixarmo-nos diluir nesta intensa sedução turca. Uma bateria ritualista de absorventes ritmos tribais, uma messiânica guitarra de chamativa caligrafia turca, um teclado embrulhado numa alquimia electrónica e a enfeitiçante voz cantada na sua língua nativa: foram estes os quatro responsáveis pela boa disposição que se viveu na cálida tarde deste derradeiro dia de SonicBlast. Um grande bazar de caleidoscópico psicadelismo onde nos perdemos e encontramos. Para finalizar num estilo rockeiro, ainda tivemos direito a uma agitada cover do mítico Erkin Koray (influente guitarrista/vocalista turco que falecera no passado ano). Gaye Su Akyol foi claramente uma aposta ganha.

The Obsessed

De texanas calçadas entrava no palco secundário um dos mais importantes bastiões da história do Doom Metal: os grandes The Obsessed. Depois de resolvidos alguns problemas técnicos iniciais que embaciaram a definição do som (principalmente das guitarras e voz), a banda norte-americana liderada pelo carismático Scott "Wino" Weinrich assumiu a responsabilidade de ser o único representante do lado mais tradicional de um opressivo, combativo, possante e altivo Doom Metal nesta edição do SonicBlast, e brindou todos os seus discípulos com uma vil descarga de pesada negritude às costas de duas imponentes guitarras que hasteiam bem alto gloriosos, epidémicos, despóticos e poderosos riffs, um baixo sisudo de monolítica, sombreada, resistente e granítica reverberação, uma bateria incisiva que se desdobrava em velocidades fortemente contrastadas, e uma voz decrépita, diabrina e melódica, de coloração acinzentada e entoação intrigante. A plateia abanava pesada e lentamente a cabeça na instintiva resposta à massiva negritude derramada pelas colunas. Os The Obsessed pendularam entre velhos e novos temas, ficando a faltar a “Lost Sun Dance” (canção originária do portentoso álbum de estreia de Spirit Caravan, um outro velho projecto de Wino) que a banda costuma levar na bagagem. Foi um concerto satisfatório, mas a luz do dia não beneficiou a vampírica sonoridade de uma banda que se sente bem mais confortável em expor-se à desmaiada luz lunar e esconder-se dentro de um sarcófago enquanto lá fora reina a amarelecida luz solar. 

Brant Bjork Trio

E se a sonoridade dos The Obsessed não tirou qualquer benefício da hora demasiado diurna em que foi levada a palco, a de Brant Bjork posta em prática às 19h da tarde, sob os fogosos e lustrosos raios solares, foi de uma perfeita comunhão. Na companhia do icónico Mario Lalli no baixo (figura de uma importância decisiva no nascimento e desenvolvimento do Desert Rock), Brant Bjork subiu ao palco principal sob a forma de power-trio. Esta era a terceira vez que eu participava na sua transformadora homilia desértica (a primeira teve lugar no já extinto Porto-Rio em 2008), mas o depósito do entusiasmo estava atestado. Com residência na árida cidade californiana de Palm Desert, o lendário Brant Bjork (baterista original dos seminais Kyuss) desenrolou todo um tapete arenoso no nosso imaginário, onde imponentes saguaros floridos se espreguiçavam na vertiginosa direcção dos céus cristalinos, verdejantes palmeiras meneavam à boleia da brisa do deserto, serpentes surfavam as finas areias das dunas, e um Sol grávido de luzência seráfica nada deixava à sombra. Com um skate debaixo dos nossos pés, percorremos os sinuosos, reptilianos, morenos e oleosos riffs – de forte odor canábico – ao serviço do seu viciante, bem-disposto e vibrante Low Desert Punk. Este tridente radical composto por uma guitarra polposa, enleante e flexuosa, uma bateria funky de ritmicidade entretida, relaxada e descomplicada, um baixo de groove magnético, denso e elástico, e uma límpida e ensolarada voz de pele bronzeada, ofereceu-nos uma das mais notáveis performances da presente edição. Verdadeira mescalina via auditiva. Fora do palco, os corpos transpirados luziam numa detida e lasciva dança. E foi ao som de alguns clássicos retirados do sagrado ‘Jalamanta’ (amém!) como “Too Many Chiefs... Not Enough Indians” e “Lazy Bones/Automatic Fantastic”, assim como da “Let The Truth Be Known” reproduzida ao vivo com uma nova roupagem (entre outros), que este trio nascido e crescido no deserto de Mojave nos namorou do primeiro ao último segundo da sua irresistível actuação.

High On Fire

Os titânicos High On Fire estavam aí e o público cimentava-se e estendia-se no interior do recinto até onde a vista podia alcançar. Um imenso mar de gente de coração a galope e olhar sedento por experienciar um dos concertos mais intensos da sua vida alongava-se da entrada do recinto até ao gradeamento frontal dos palcos. E assim foi: o incisivo tridente norte-americano – liderado pelo emblemático Matt Pike (Sleep) – soltou um enfurecido e desgovernado bulldozer na nossa direcção que não deixou ninguém ileso. Com o seu último álbum ‘Cometh the Storm’ ainda sob brasas (review aqui), os High on Fire não tiraram o pé do acelerador durante toda a sua demolidora performance. Foram, de resto, verdadeiros exterminadores em palco. Autênticos lança-chamas que todos carbonizaram com o seu impiedoso tridente sonoro composto por um mastodôntico, intoxicante, euforizante e ciclónico Stoner Metal que ocasionalmente se enlameia nos nimbosos pântanos do Sludge Metal, e um poderoso, agressivo, corrosivo e raivoso Heavy Metal de vertiginosa pedalada Punk. Completamente abalroados, sacudidos e mastigados pela sua eruptiva, escaldante, excitante e ofensiva musicalidade, todos nos banhámos no interior deste vulcão em salivante erupção. As cabeças rodopiavam furiosamente, os corpos embatiam violentamente entre si, viam-se espasmos de adrenalina, copos de cerveja arremessados e corpos naufragados, levados na crista da revoltosa onda humana. A loucura estava instalada e nada parecia conseguir deter aquela locomotiva endiabrada – carburada a fogosa ferocidade – chamada High On Fire. As monolíticas paredes de colunas e amplificadores derretiam com tamanhas potência e ardência. Nesta tempestade perfeita que nos desenraizara e levara na garganta dos remoinhos que tudo e todos varriam, rugia uma voz felina de temperamento raivoso e tez corrosiva, rouquenha e urticante, trovejava uma montanhosa guitarra de ventosos, gordurosos, opressivos, e tormentosos riffs de onde ziguezagueavam apressados, lampejantes, ácidos e trepidantes solos, bafejava pesadamente um baixo obeso de linhas quentes, tensas, densas e sufocantes, e crepitava com desumana explosividade uma enérgica bateria de açoitadas retumbantes, explosivas, incisivas e fulminantes. No final estávamos todos caídos, combalidos e de mandibulas deslocadas. Os culpados? Todos apontámos o dedo aos High On Fire.

Wine Lips

Os Wine Lips foram – para mim – a grande surpresa do SonicBlast (isto, exclusivamente devido ao facto de não estar familiarizado com a banda, à qual dediquei apenas uma rápida e descomprometida escuta, cheia de solavancos, assim que foram oficialmente anunciados para o festival). Vi-me sem expectativas no meio de centenas de pessoas inquietas em frente ao palco principal, enquanto que quatro rapazes de óculos de sol surgiam na noite em frente a um ecrã que exibia o acelerado crescimento de fungos num loop doentio, e acabei inteiramente rendido ao frenético festim que se seguiu. Confesso que já tinha saudades de ser surpreendido pela positiva por uma banda desconhecida, e, no caso de Wine Lips, vivi uma mudança drástica ao aproximar-me do palco apático e com as mãos enterradas nos bolsos e acabar o concerto com a testa a gotejar suor, a roupa amarrotada, os pés espezinhados e completamente estafado de tanto dançar. Em poucos segundos, estes canadianos colocaram-me numa destravada, animada e vertiginosa montanha-russa, sem alavanca de emergência, da qual só consegui sair no final do concerto. De instrumentos apontados a um irreverente, estético, dinâmico, e empolgante Garage Rock desbravado à boa moda australiana e ensopado num electrizante, propulsivo, ácido e trepidante Heavy Psych de toxicidade a perder de vista e gaseificado por uma crocante e chamejante distorção, os Wine Lips foram uma imparável centrifugadora que colocara à prova a firmeza dos alicerces que sustentam a nossa sanidade mental. Mergulhada nesta escaldante efervescência de um psicadelismo febril, a plateia reagia como podia perante aquela excitante combustão de adrenalina. Incontáveis corpos eram levados acima da palpitante massa humana pelas palmas das mãos e os seguranças em frente ao palco tiveram seguramente uma das noites mais ocupadas das suas vidas profissionais ao resgatarem um sem número de náufragos que faziam do CrowdSurf a única forma de lidar com toda aquela saturada combustão de intensa euforia em estado musical. Todos saltavam, todos sorriam, todos desbundavam, todos alucinavam ao buliçoso som deste convulso quarteto que a todos fez queimar calorias. 

No dia seguinte regressei a casa com aquele sentimento tão familiar – e transversal a toda a comunidade SonicBlast – que se renova anualmente: o SonicBlast é mesmo o lugar onde mais desejamos estar e assim que o mesmo termina sentimo-nos invadidos por uma crescente vontade de a ele regressar. Para além da experiência dos 14 concertos acima transcrita em palavras, assisti, parcialmente, a mais um punhado de outros, mas sem o comprometimento necessário para que pudesse traduzi-los com a precisão que cada descrição me merece, e perdi ainda, com algum arrependimento, outras 2/3 bandas, pois nem sempre a expectativa (teoria) e a realidade (prática) caminham de mãos dadas. Nesses dias de SonicBlast deu ainda para visitar a praia (e constatar, com admiração, que a água do mar não estava tão fria como é habitual), para umas reparadoras corridas matinais até à freguesia vizinha de Moledo (que tantas e tantas vívidas memórias ainda preserva) pela paradisíaca costa atlântica, e uns passeios por Vila Praia de Âncora, pois tudo isto faz também parte da experiência SonicBlast. Um especial agradecimento ao Ricardo e à Telma pela reiterada confiança (é com inefável vaidade e desmesurado orgulho que há muito visto o traje de media partner daquele que é o meu festival de eleição) e ao Bruno Pereira (com os seus olhos de lince) pela sua impressionante colaboração fotográfica com o El Coyote. Termino como comecei: a 13ª edição já tem data para acontecer (7, 8 e 9 de Agosto de 2025) e os primeiros bilhetes a um preço bastante reduzido já se encontram em distribuição. Ainda falta muito?

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