A serenidade da madrugada de
sábado era interrompida pelos fechos-éclairs
das tendas. O dia começava a aquecer e prolongar a permanência no interior da
tenda adjectivava-se um perfeito suplício. Também eu evacuei a minha e fiquei
alguns instantes paralisado, de pálpebras cerradas e narinas dilatadas, a
contemplar a paz que reinava no parque. De destacar que esta edição do
Reverence foi mesmo uma das experiências mais positivas em festivais de música no
que ao capítulo do ruído dos campistas diz respeito. Era demasiado fácil
adormecer embalado pelos últimos acordes que nos chegavam do recinto do
festival, e só mesmo a claridade e o aumento da temperatura capazes de nos
fazer despertar quando a amanhã ainda bocejava. Havíamos combinado passar algum
tempo para lá das “muralhas” do Reverence e divagar pelas ruas da freguesia de
Valada, e assim fizemos. Já muitos festivaleiros se refrescavam e espevitavam
debaixo dos chuveiros públicos presentes no parque, enquanto outros enfiavam as
suas cabeças no exterior das tendas e respiravam os frescos e revitalizantes
ares da manhã. Todo o parque acordava e se preparava para o derradeiro dia do
Reverence. Para lá dos domínios do festival, a freguesia de Valada testemunhava
de braços caídos o “assalto” dos festivaleiros aos seus comércios mais atractivos
(como bares e restaurantes). No regresso já era visível a crescente
peregrinação até ao recinto do festival. Os primeiros concertos da tarde de
sábado estavam quase a começar.
18h00 | Samsara Blues
Experiment | Palco Rio
Era a terceira vez que comungava
SBE ao vivo, mas o meu coração comportava-se como se da primeira vez se
tratasse. A banda germânica (agora em formato de power-trio) subia ao palco Rio quando ainda a plateia se condensava
e dava início à sua característica descarga de Heavy Psych (que raras vezes não
se desenvolve para os trilhos Doom'escos) que não deixa ninguém indiferente. Desde o dia em
que me cruzei com eles que SBE são uma das minhas bandas favoritas e, portanto,
uma das que mais mexe comigo. Confesso sentir alguma dificuldade em lidar com
toda aquela injecção de adrenalina transpirada pelos seus instrumentos, e o
concerto no Reverence não foi excepção. A plateia crescia e agitava os pescoços
numa harmoniosa sintonia, enquanto que em palco os SBE provavam merecer um
lugar de destaque no palco Reverence. Foi uma performance estarrecedora e
entusiástica que inflamou todos os seus fiéis, deixando-os de pálpebras semicerradas
e corpos inanimados.
23h30 | Amon Düül
II | Palco Reverence
Depois
de presenciarmos Hawkwind na estreante edição, o Reverence apostava – agora na
2ª edição – no Krautrock de Amon Düül II
(habituando os seus seguidores à presença de uma banda de inquestionável
destaque na musicalidade setentista em cada uma das suas edições). Esta “orquestra”
dedicada ao Krautrock e ao Prog Rock repescada da Alemanha setentista
abrilhantou o Reverence com a sua musicalidade de orientação onírica. De manta
estendida na relva e corpos nela deitados, vivenciámos esta longa e fantasiosa
odisseia promovida por Amon Düül II. Recordo-me de
atentar o firmamento estelar enquanto as nuvens desobstruíam lentamente o meu
campo de visão e pensar: “que sensação tão prazerosa deixar-me levitar pelo
oceano cósmico ao som do melhor Krautrock.”. Deixei-me de tal forma embebedar
pela ambiência que me envolvia, que adormeci na ponta final do concerto.
Acordei perante um ruidoso aplauso da plateia enquanto os Amon Düül II nos agradeciam em alongadas vénias.
02h00
| Electric Moon | Palco Rio
É
justo antecipar-me e enunciar que Sleep e Electric Moon foram os dois melhores
concertos do festival (a meu ver, é claro). Dizer também que já esperava uma performance monstruosa
deste power-trio alemão, mas o que
acabou por acontecer em palco rasgou e ultrapassou as costuras das mais
positivas expectativas que lhes dedicara no pré-concerto. Ainda a tenta
encontrar o lúcido equilíbrio depois de no concerto de Amon
Düül II ter adormecido de sorriso talhado no rosto, Electric
Moon revelou-se uma das mais incisivas e admiráveis viagens espirituais que me
recordo de testemunhar. Foi debaixo de uma imponente e fulgurante lua cheia, que
os Electric Moon rapidamente nos seduziram com as suas jams profundamente narcotizantes. A plateia dançava efusivamente e
vivia-se um clima homogéneo de bem-estar. O baixo pulsante e hipnótico de Komet
Lulu, a guitarra indomável e vertiginosa de Sula Bassana, e a bateria tanto
contemplativa quanto explosiva de Marcus catapultaram-nos para o lado eclipsado
da lua. Electric Moon foi uma crescente cavalgada que culminou na perfeita
sedação das nossas consciências. Respirou-se a extasiante ataraxia. No final do
concerto, a plateia sedenta de algo assim estava incrédula com o que havia presenciado
em Electric Moon. Uma verdadeira erupção de prazer que nos afectou e elevou ao
fustigado solo lunar. Um dos grandes concertos da minha vida.
No
regresso à tenda as nossas bocas caladas gritavam o quão compensadora fora
aquela 2ª edição do Reverence. Caminhávamos petrificados pela inolvidável experiência
de ter vivenciado algumas das nossas bandas favoritas em tão pouco tempo. Longa
e gloriosa vida ao Reverence, pois Portugal precisa de um festival assim.
1 comentário:
Fico feliz por saber que alguém partilhou o mesmo sentimento que eu nessa noite.
Obrigado por estas palavras.
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