quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Review: SonicBlast Moledo 2016 [dia 2]

Moledo acordou embrulhado num manto brumoso e orvalhado. A manhã estava fria e muda na floresta que servia de casa a grande parte dos peregrinos musicais que responderam positivamente à convocatória do SonicBlast Moledo, e apenas o ruído estridente dos fechos-éclair chicoteava o pesado silêncio que se seguira a uma noite branca de festa agitada e perdurável. A longos espaços temporais as cabeças de cabelos despenteados e olhar adormecido saíam das tendas e respiravam a fresca e revitalizante brisa que se passeava por ali. Também alguns corajosos ainda de passada pouco convicta aproximavam-se dos chuveiros. Os festivaleiros recompunham-se assim para o derradeiro dia de festival. E apesar do forte nevoeiro que sobrevoava as nossas cabeças, ninguém parecia minimamente incomodado. A ementa musical deste segundo dia de SonicBlast Moledo provocara em nós um género de hipnose, não permitindo que factores externos a ela pudessem beliscar-nos. 



Cachemira | 16:15 | Palco Piscina 
Cachemira é um power-trio espanhol fielmente dedicado ao Heavy Psych N’ Blues resgatado dos dourados anos 70, que conta com elementos de bandas influentes como Prisma Circus, 1886 e Brain Pyramid. Formada muito recentemente na cidade de Barcelona, Cachemira era uma das bandas pela qual nutria mais expectativa, e a sua performance ao vivo não só acabou por corresponder aos meus anseios mais elogiosos, como dilatou a já grande admiração sentida pela mesma. A plateia compactava-se em frente ao palco, enquanto que na piscina subsistiam alguns destemidos, não conformados com a ausência de sol e calor. E se a baixa e maciça neblina enfraquecia os raios solares, nada conseguiu deter ou intimidar a resplandecente actuação de Cachemira que nos manteve em constante desordem emocional do primeiro ao último tema. Baseados numa sonoridade entusiástica que nos desprende a cabeça em extravagantes movimentos, estes três hippies da era moderna brindaram-nos com uma intensa e delirante cavalgada. O público contorcia-se prazerosamente ao som de uma guitarra indomável de solos hipnóticos e vertiginosos, um baixo vigoroso e ondeante, uma bateria frenética de acrobacias inventivas e estonteantes, e ainda uma voz lúcida e viril que nos esperta. No final estava verdadeiramente deliciado com o que havia testemunhado. Cachemira foi uma experiência verdadeiramente transcendental que nos manteve tão para lá da gravidade consciencial.


Spelljammer | 18:05 | Palco Piscina
Desde há muito que me convertera num devoto apreciador de Spelljammer (ainda desde os tempos em que este projecto era formado por um único músico apenas). E, portanto, ter a oportunidade de assistir ao vivo a toda esta portentosa descarga de Psych Doom instigava os meus batimentos cardíacos. Este power-trio natural da capital sueca – que conta já com três registos discográficos (o 1º falado aqui e o último falado aqui) – não precisou de tocar sequer nas cordas para obrigar toda a plateia a levantar-se e a comungar de corpo hirto toda aquela avalanche psicotrópica. Os amplificadores vomitavam reverberantes e monolíticas paredes decibélicas que se agigantavam e nos sombreavam. Sustentados por riffs vagarosos, corpulentos e sobranceiros, estes três monges provenientes da obscuridade conquistaram toda uma plateia que se deixara dominar pelos seus inquisidores domínios. As nossas cabeças perpetuavam-se em movimentos pendulares enquanto que os nossos cabelos se contorciam e estendiam na instintiva obediência à titânica sonoridade de Spelljammer. Nem as baixas e densas nuvens que até então governavam os céus conseguiram resistir à ambiência opressiva deste tridente sueco e deixaram que os primeiros raios solares do dia desmaiassem nos nossos rostos completamente embriagados. A guitarra soberana edificava supremos e torneados riffs, o baixo fúnebre enrijecia e assombrava os acordes, a portentosa bateria tiquetaqueava com robustez toda esta pesada galopada, e a voz cáustica e cavernosa penetrava-nos e enlutava-nos a alma. Foi demasiado fácil e imediato responder a toda esta morfínica radiação Doom’esca, e considerar Spelljammer um dos grandes e ímpares concertos do festival.


Stoned Jesus | 21:00 | Palco Principal
Era notório que a banda ucraniana representava uma das principais atracções do SonicBlast Moledo e, portanto, a expectativa era generalizada. A numerosa e ruidosa plateia aconchegava-se em frente ao palco de punhos erguidos incentivando o power-trio que acabou mesmo por conquistar os mais cépticos com uma performance tremendamente bem conseguida. Da fria capital ucraniana de Kiev, Stoned Jesus trouxe consigo um explosivo cocktail sonoro composto por um musculado Stoner Rock, de estimulante condução Progressiva – que por vezes resvala num retumbante Doom – que alvoroçou todo o público ali presente. A plateia entoava em uníssono os seus temas mais afamados e a banda enlevava-se de orgulho. Vivia-se um perfeito estado de simbiose entre Stoned Jesus e a plateia. Foi à boleia de uma guitarra inflamante de riffs montanhosos e solos alucinantes, um baixo de murmúrios oscilantes e possantes, uma bateria explosiva e uma voz límpida e melódica que toda a plateia vibrava num crescente estado de excitação. No final do concerto a banda fez por merecer uma prolongada vénia em forma de aplauso, e os elogios à banda ucraniana estenderam-se pelo resto da noite.


Uncle Acid & the deadbeats | 22:15 | Palco Principal
Sou um confesso admirador da ambiência intriguista que governa a profana alma deste quarteto inglês natural da cidade de Cambridge, e, portanto, era uma das bandas que mais desejava vivenciar ao vivo no SonicBlast Moledo. Subiram ao palco amortalhados por uma densa e envolvente nebulosidade e aplaudidos por uma plateia de olhar fascinado. Uncle Acid enlutaram-nos com um luciférico ritual que nos manteve magnetizados do primeiro ao último tema. Baseada num elegante e obscuro Heavy Psych de contornos setentistas e com claros chamamentos ao fumarento Psych Doom, a corrosiva e enigmática sonoridade destes quatro sacerdotes de instrumentos apontados ao profano desgastou e embaciou a nossa lucidez. Estávamos todos hipnotizados pelas guitarras Sabbath’icas de riffs mélicos, sólidos e serpenteantes, e vertiginosos, impressionantes e arrebatadores solos, um baixo de respiração robusta e intensa, uma bateria dinâmica conduzida a volúpia, e vocais gélidos e melódicos que nos trespassavam e embriagavam. Uncle Acid lideraram toda uma cerimónia isotérica que nos massajou, persuadiu e entorpeceu. No final estávamos todos mumificados e a recuperar lentamente a lucidez que fora sequestrada durante todo o corpo temporal do concerto. Foi difícil despertar desta poderosa e envolvente hipnose concebida pelos Uncle Acid e aceitar que chegara ao fim um dos mais belos concertos do festival.


Truckfighters | 23:45 | Palco Principal
Este tridente histórico do Stoner Rock europeu era muito provavelmente a banda mais desejada do festival. Com 15 anos de carreira, a banda sueca é hoje uma das formações mais respeitadas e idolatradas do género. Deles esperava-se uma performance pujante e assim aconteceu. Em palco foram verdadeiros selvagens (no sentido elogioso da palavra) e com essa enérgica performance conseguiram contagiar toda uma plateia já transpirada de adrenalina. Os Truckfighters foram incansáveis na forma em como agarraram as rédeas da sua actuação, arrancando para uma tremenda cavalgada de riffs que nunca abrandou. Vivia-se uma crescente e agitada euforia dentro e fora do palco. A sua sonoridade desértica é bordada por uma guitarra desgovernada que se transcende em poderosos acordes que nos obrigam a sussurra-los e alucinantes e incitantes solos, um baixo fibrado de bafo ritmado e portentoso, uma bateria fulgurante que nos incendeia com as suas ofensivas explosivas, e uma voz aguerrida em perfeita consonância com o instrumental. São estes os ingredientes que em concordância fazem de Truckfighters uma das bandas mais elogiadas ao vivo. E nessa noite conseguiram – certamente – alimentar ainda mais essa qualidade que tão justamente os caracteriza. Truckfighters foram uma das boleias musicais mais vertiginosas do SonicBlast Moledo, passeando-nos a alta velocidade pelos dourados e bronzeados desertos norte-americanos de firmamentos a perder de vista.


Salem’s Pot | 01:15 | Palco Principal
Salem’s Pot foi a melhor forma de encerrar a mais inesquecível edição do SonicBlast Moledo. O quinteto sueco de sinistras máscaras a cobrir o rosto brindou todos os presentes com o seu charmoso e empolgante Heavy Psych de mãos dadas a um sombreado e inebriante Psych Doom. A plateia entregava-se aos misteriosos domínios de Salem’s Pot dançando detidamente de olhar cerrado e sorriso golpeado. Estes cinco feiticeiros – de instrumentos apontados ao lado eclipsado da alma – encantaram tudo e todos que permaneciam no caminho da sua funesta reverberação. As duas guitarras perdiam-se e encontravam-se nos seus solos mirabolantes que por sua vez desaguavam em soberanos, espantosos e luciféricos riffs capazes de nos intimidar e fazer estremecer, o atemorizante baixo de passada lenta e massiva robustecia com ênfase toda aquela marcha fúnebre, a bateria deliciosamente ritmada tiquetaqueava na perfeição toda esta caravana sonora que se passeava pela fria e turvada noite de Moledo, o hipnotizante sintetizador – de alma vendida ao Diabo – condimentava a musicalidade de Salem’s Pot, enquanto que a voz frígida e gritante nos espertava neste perfeito sonho acordado. No final do concerto agigantava-se em todos nós uma ressaca espiritual, sintoma natural de quem comungara o mais pleno êxtase via auditiva. 


Foi já a ressentirmo-nos das intensas dores musculares que voltámos as costas àquela que admitimos tratar-se da mais especial e inesquecível edição do SonicBlast Moledo. Chegámos à tenda com as emoções completamente embriagadas e um cansaço corporal de quem obedecera à religiosidade sonora. No exterior podia ouvir-se a exaltação crescer de tom, mas incapaz de atropelar o sono que nos embalara pela noite dentro. 


*Fotografias da autoria de Guilherme Dourart 

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