Moledo acordou embrulhado
num manto brumoso e orvalhado. A manhã estava fria e muda na floresta que
servia de casa a grande parte dos peregrinos musicais que responderam
positivamente à convocatória do SonicBlast
Moledo, e apenas o ruído estridente dos fechos-éclair chicoteava o pesado
silêncio que se seguira a uma noite branca de festa agitada e perdurável. A
longos espaços temporais as cabeças de cabelos despenteados e olhar adormecido
saíam das tendas e respiravam a fresca e revitalizante brisa que se passeava
por ali. Também alguns corajosos ainda de passada pouco convicta aproximavam-se
dos chuveiros. Os festivaleiros recompunham-se assim para o derradeiro dia de
festival. E apesar do forte nevoeiro que sobrevoava as nossas cabeças, ninguém
parecia minimamente incomodado. A ementa musical deste segundo dia de SonicBlast Moledo provocara em nós um
género de hipnose, não permitindo que factores externos a ela pudessem
beliscar-nos.
Cachemira | 16:15 | Palco Piscina
Cachemira é
um power-trio espanhol fielmente
dedicado ao Heavy Psych N’ Blues
resgatado dos dourados anos 70, que conta com elementos de bandas influentes
como Prisma Circus, 1886 e Brain Pyramid. Formada muito recentemente na cidade
de Barcelona, Cachemira era uma das
bandas pela qual nutria mais expectativa, e a sua performance ao vivo não só
acabou por corresponder aos meus anseios mais elogiosos, como dilatou a já
grande admiração sentida pela mesma. A plateia compactava-se em frente ao
palco, enquanto que na piscina subsistiam alguns destemidos, não conformados
com a ausência de sol e calor. E se a baixa e maciça neblina enfraquecia os
raios solares, nada conseguiu deter ou intimidar a resplandecente actuação de Cachemira que nos manteve em constante
desordem emocional do primeiro ao último tema. Baseados numa sonoridade
entusiástica que nos desprende a cabeça em extravagantes movimentos, estes três
hippies da era moderna brindaram-nos com uma intensa e delirante cavalgada. O
público contorcia-se prazerosamente ao som de uma guitarra indomável de solos
hipnóticos e vertiginosos, um baixo vigoroso e ondeante, uma bateria frenética de
acrobacias inventivas e estonteantes, e ainda uma voz lúcida e viril que nos
esperta. No final estava verdadeiramente deliciado com o que havia testemunhado.
Cachemira foi uma experiência
verdadeiramente transcendental que nos manteve tão para lá da gravidade
consciencial.
Spelljammer | 18:05 | Palco Piscina
Desde há muito que me convertera
num devoto apreciador de Spelljammer
(ainda desde os tempos em que este projecto era formado por um único músico
apenas). E, portanto, ter a oportunidade de assistir ao vivo a toda esta
portentosa descarga de Psych Doom
instigava os meus batimentos cardíacos. Este power-trio natural da capital sueca – que conta já com três
registos discográficos (o 1º falado aqui e o último falado aqui)
– não precisou de tocar sequer nas cordas para obrigar toda a plateia a
levantar-se e a comungar de corpo hirto toda aquela avalanche psicotrópica. Os
amplificadores vomitavam reverberantes e monolíticas paredes decibélicas que se
agigantavam e nos sombreavam. Sustentados por riffs vagarosos, corpulentos e sobranceiros, estes três monges provenientes
da obscuridade conquistaram toda uma plateia que se deixara dominar pelos seus
inquisidores domínios. As nossas cabeças perpetuavam-se em movimentos
pendulares enquanto que os nossos cabelos se contorciam e estendiam na
instintiva obediência à titânica sonoridade de Spelljammer. Nem as baixas e densas nuvens que até então governavam
os céus conseguiram resistir à ambiência opressiva deste tridente sueco e
deixaram que os primeiros raios solares do dia desmaiassem nos nossos rostos
completamente embriagados. A guitarra soberana edificava supremos e torneados riffs, o baixo fúnebre enrijecia e
assombrava os acordes, a portentosa bateria tiquetaqueava com robustez toda
esta pesada galopada, e a voz cáustica e cavernosa penetrava-nos e enlutava-nos
a alma. Foi demasiado fácil e imediato responder a toda esta morfínica radiação
Doom’esca, e considerar Spelljammer um dos grandes e ímpares
concertos do festival.
Stoned Jesus | 21:00 | Palco Principal
Era notório que a banda
ucraniana representava uma das principais atracções do SonicBlast Moledo e, portanto, a expectativa era generalizada. A
numerosa e ruidosa plateia aconchegava-se em frente ao palco de punhos erguidos
incentivando o power-trio que acabou
mesmo por conquistar os mais cépticos com uma performance tremendamente bem
conseguida. Da fria capital ucraniana de Kiev, Stoned Jesus trouxe consigo um explosivo cocktail sonoro composto
por um musculado Stoner Rock, de
estimulante condução Progressiva –
que por vezes resvala num retumbante Doom
– que alvoroçou todo o público ali presente. A plateia entoava em uníssono os
seus temas mais afamados e a banda enlevava-se de orgulho. Vivia-se um perfeito
estado de simbiose entre Stoned Jesus
e a plateia. Foi à boleia de uma guitarra inflamante de riffs montanhosos e solos alucinantes, um baixo de murmúrios
oscilantes e possantes, uma bateria explosiva e uma voz límpida e melódica que
toda a plateia vibrava num crescente estado de excitação. No final do concerto
a banda fez por merecer uma prolongada vénia em forma de aplauso, e os elogios
à banda ucraniana estenderam-se pelo resto da noite.
Uncle Acid & the deadbeats | 22:15 | Palco Principal
Sou um confesso admirador da
ambiência intriguista que governa a profana alma deste quarteto inglês natural
da cidade de Cambridge, e, portanto, era uma das bandas que mais desejava
vivenciar ao vivo no SonicBlast Moledo.
Subiram ao palco amortalhados por uma densa e envolvente nebulosidade e
aplaudidos por uma plateia de olhar fascinado. Uncle Acid enlutaram-nos com um luciférico ritual que nos manteve
magnetizados do primeiro ao último tema. Baseada num elegante e obscuro Heavy Psych de contornos setentistas e com claros chamamentos ao
fumarento Psych Doom, a corrosiva e
enigmática sonoridade destes quatro sacerdotes de instrumentos apontados ao
profano desgastou e embaciou a nossa lucidez. Estávamos todos hipnotizados
pelas guitarras Sabbath’icas de riffs
mélicos, sólidos e serpenteantes, e vertiginosos, impressionantes e
arrebatadores solos, um baixo de respiração robusta e intensa, uma bateria
dinâmica conduzida a volúpia, e vocais gélidos e melódicos que nos trespassavam
e embriagavam. Uncle Acid lideraram
toda uma cerimónia isotérica que nos massajou, persuadiu e entorpeceu. No final
estávamos todos mumificados e a recuperar lentamente a lucidez que fora
sequestrada durante todo o corpo temporal do concerto. Foi difícil despertar
desta poderosa e envolvente hipnose concebida pelos Uncle Acid e aceitar que chegara ao fim um dos mais belos concertos
do festival.
Truckfighters | 23:45 | Palco Principal
Este tridente histórico do Stoner Rock europeu era muito
provavelmente a banda mais desejada do festival. Com 15 anos de carreira, a
banda sueca é hoje uma das formações mais respeitadas e idolatradas do género.
Deles esperava-se uma performance pujante e assim aconteceu. Em palco foram
verdadeiros selvagens (no sentido elogioso da palavra) e com essa enérgica
performance conseguiram contagiar toda uma plateia já transpirada de
adrenalina. Os Truckfighters foram
incansáveis na forma em como agarraram as rédeas da sua actuação, arrancando
para uma tremenda cavalgada de riffs que
nunca abrandou. Vivia-se uma crescente e agitada euforia dentro e fora do
palco. A sua sonoridade desértica é bordada por uma guitarra desgovernada que se
transcende em poderosos acordes que nos obrigam a sussurra-los e alucinantes e
incitantes solos, um baixo fibrado de bafo ritmado e portentoso, uma bateria
fulgurante que nos incendeia com as suas ofensivas explosivas, e uma voz
aguerrida em perfeita consonância com o instrumental. São estes os ingredientes
que em concordância fazem de Truckfighters
uma das bandas mais elogiadas ao vivo. E nessa noite conseguiram – certamente –
alimentar ainda mais essa qualidade que tão justamente os caracteriza. Truckfighters foram uma das boleias
musicais mais vertiginosas do SonicBlast
Moledo, passeando-nos a alta velocidade pelos dourados e bronzeados
desertos norte-americanos de firmamentos a perder de vista.
Salem’s Pot | 01:15 | Palco Principal
Salem’s
Pot
foi a melhor forma de encerrar a mais inesquecível edição do SonicBlast Moledo. O quinteto sueco de
sinistras máscaras a cobrir o rosto brindou todos os presentes com o seu charmoso
e empolgante Heavy Psych de mãos
dadas a um sombreado e inebriante Psych
Doom. A plateia entregava-se aos misteriosos domínios de Salem’s Pot dançando detidamente de
olhar cerrado e sorriso golpeado. Estes cinco feiticeiros – de instrumentos
apontados ao lado eclipsado da alma – encantaram tudo e todos que permaneciam no
caminho da sua funesta reverberação. As duas guitarras perdiam-se e
encontravam-se nos seus solos mirabolantes que por sua vez desaguavam em soberanos,
espantosos e luciféricos riffs capazes
de nos intimidar e fazer estremecer, o atemorizante baixo de passada lenta e massiva
robustecia com ênfase toda aquela marcha fúnebre, a bateria deliciosamente
ritmada tiquetaqueava na perfeição toda esta caravana sonora que se passeava
pela fria e turvada noite de Moledo, o hipnotizante sintetizador – de alma
vendida ao Diabo – condimentava a musicalidade de Salem’s Pot, enquanto que a voz frígida e gritante nos espertava
neste perfeito sonho acordado. No final do concerto agigantava-se em todos nós
uma ressaca espiritual, sintoma natural de quem comungara o mais pleno êxtase
via auditiva.
Foi já a ressentirmo-nos das
intensas dores musculares que voltámos as costas àquela que admitimos tratar-se
da mais especial e inesquecível edição do SonicBlast
Moledo. Chegámos à tenda com as emoções completamente embriagadas e um
cansaço corporal de quem obedecera à religiosidade sonora. No exterior podia
ouvir-se a exaltação crescer de tom, mas incapaz de atropelar o
sono que nos embalara pela noite dentro.
*Fotografias da autoria de Guilherme Dourart
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