Foi já com o Hard
Club muito bem composto (e a caminhar a passos apressados para a lotação esgotada)
que os minhotos Jesus the Snake – regressados de um hiato e carregando o
peso da responsabilidade que é abrir para uma banda da montanhosa influência de
All Them Witches – davam início ao seu lisérgico ritual. De cerveja
empunhada, pálpebras tombadas e corpos lentamente baloiçados comungámos aquelas
anestésicas brisas de um viajante, ensolarado, delicado, arejado e deslumbrante
Psychedelic Rock de sotaque Pink Floyd’eano, radioso clima
californiano e salgado sabor a mar. Desdobrando longas, reflexivas, lenitivas e
ambientais faixas instrumentais com vista desabrigada para a imensa noite
cósmica, o quinteto natural de Vizela oxigenou e apaziguou todos os presentes com
uma pachorrenta, ternurenta e celestial sonoridade que nos abrira as comportas
do universo onírico e embalsamara num imperturbável estado mesmérico. Uma
performance governada pela mansidão que nem os entusiasmados gritos da sua
claque trazida de casa conseguiram perturbar. Flutuámos leve e calmamente pelas
quietas, paradisíacas e inanimadas águas de Jesus the Snake e só no
último tema fomos arrancados da hipnose com um colorido, absorvente e ritmado
safari que devolvera a lucidez ao nosso corpo e mente. Foi o fármaco perfeito
para instaurar em cada um de nós a bonança antes da catártica tempestade tomar conta dos nossos céus.
Seguiam-se os
responsáveis pelo preenchimento total da sala de maiores dimensões do Hard Club numa fresca e húmida noite de nevoeiro na cidade do Porto:
os já icónicos e largamente venerados All them Witches. Recordo-me com
bastante clareza do momento em que tropecei no seu irrepetível ‘Lightning at
the Door’ (lançado em 2013) e ficar de queixo caído durante muito, muito
tempo, até que os pude vivenciar com o coração em chamas no já longínquo ano de
2016 no SonicBlast (experiência aqui traduzida em palavras). Daí
para cá seguiu-se o impopular cancelamento daquela que seria mais uma aparição
da banda no SonicBlast (corria o ano de 2022) e, mais recentemente, o
surpreendente anúncio da saída do baterista Robby Staebler com a banda
já de malas feitas para começar a trilhar a tour europeia onde este
concerto se insere. A substituição do músico foi imediata, mas a escolha,
principalmente por desconhecimento, levantou uma monolítica onda de desconfiança
que ainda hoje se vai mantendo. E por isso, devo antecipar-me e admitir – sem reservas
– que fiquei desiludido com a performance do novo baterista. Não só por me
parecer tecnicamente bastante preso de movimentos, barulhento e demasiado simplista,
como o som estridente, destemperado e dissonante tem muitas dificuldades em
adaptar-se e fundir-se na harmonia superiormente musicada pelos restantes
instrumentos. Logo às primeiras batidas, todos em meu redor se olharam entre si,
completamente estupefactos com o insípido e incisivo som extraído daquela
tarola que mais parecia ter sido (des)afinada pelo Lars Ulrich (Metallica),
e não foi nada fácil tentar abstrair-me da bateria durante todo o concerto. Ainda
assim, e apesar deste ter sido um detalhe demasiado relevante para conseguir ignorá-lo,
a banda presenteou toda uma plateia salivante com uma setlist
equilibrada que deu música a muitos dos temas secretamente mais suspirados por
cada um de nós. Aos primeiros acordes reconhecidos pelo público do misterioso e
esponjoso tema introdutório “See You Next Fall”, embarcámos numa
gratificante experiência pelo ardente, caramelizado, condimentado e atraente Psychedelic
Rock, regado pelo bourbon (ou a banda não fosse natural do Tennessee)
de um fogoso, provocante, afrodisíaco e lustroso Blues Rock. Combinando
uma guitarra irrepreensível de riffs viciantes, grossos, nervudos e
escaldantes de onde se desatam serpenteantes, detalhados, comoventes e
esvoaçantes solos, um baixo de pulso latejante que se conduz por linhas oleadas,
tonificadas, elásticas e pesadamente sombreadas, uma bateria retumbante, ainda
que esforçada, mas demasiado barulhenta, um fresco, quimérico e romanesco teclado
de bailados deliciosamente swingados, e uma voz liderante de tez
açucarada, melodiosa e aveludada, os All Them Witches envolveram-nos, namoraram-nos
e enfeitiçaram-nos com a contagiante efervescência de “When God Comes Back”,
a edénica fragância de “The Marriage of Coyote Woman”, o intenso magnetismo
de “Charles William” e a ritualística absorção de “Mountain”
(todas extraídas do meu álbum favorito) com a qual finalizaram o tempo
regulamentar da sua actuação antes da saída e anunciada reentrada em palco, debaixo
de um apoteótico aplauso, para o já habitual encore (os amplificadores
ligados denunciam sempre um iminente regresso), desta feita com a execução da
impulsiva e propulsiva “Bulls” para finalizar um concerto que, aos meus
ouvidos, só não tocou as costuras fronteiriças da perfeição pela aparatosa dissonância
da bateria. Não querendo com isto promover um funeral artístico ao novo
baterista, até porque estou receptivo a que este me surpreenda pela positiva no
futuro (caso ele tenha futuro de baquetas empunhadas ao serviço de All Them
Witches), mas a verdade é que senti a ausência do baterista original em
praticamente todos os temas. No final, transpirados, mas sorridentes e com um
inapagável brilho no olhar, fomos arrastados pela forte corrente humana numa
maré alta que nos levou a passo de pinguim até ao exterior do Hard Club.
Termino esta crónica agradecendo aos suspeitos do costume (Ricardo e Telma)
pela oportunidade. Há um antes e um depois da aparição deste casal (Garboyl
Lives) no panorama da promoção musical em Portugal.
📸 Fotografias captadas por Daniela Jácome (Facebook / Instagram)
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