Depois de uma noite de sono
intranquilo – diversas vezes importunado pelas profusas tertúlias incessantemente
conduzidas pelos mais variados idiomas – as minhas pálpebras recolhiam aos
primeiros raios solares da manhã. Num movimento brusco e decidido –
contrariando o ócio de quem ainda se esperneia na cama – desafoguei a cabeça
sonolenta do interior da tenda e de narinas bem dilatadas inalei os frescos e
vivificantes ares bafejados pelo oceano. O segundo dia de SonicBlast
trazia a tão ansiada esperança de que pudesse decorrer num cenário climatérico
contrastando (para melhor, é claro) com aquele que marcara uma vincada presença
no dia anterior. Os incisivos ruídos dos fechos zíper das tendas iam
golpeando a plácida atmosfera matinal que governava no campismo, e as geleiras
eram arrastadas para o exterior. Avizinhavam-se os já habituais planos de
revitalização na preparação física e mental para o segundo dia de festival: um
demorado passeio pelo paredão à beira-mar e um relaxado almoço pelas principais
artérias de Moledo.
Da Califórnia à velha Pérsia em Skate
E foi já ao crescente som do
colectivo português O Bom, o Mau e o Azevedo que iniciámos a caminhada
de aproximação ao recinto do festival. Munida de um envolvente, despreocupado, aromatizado e
eloquente Surf Rock de adorável e afável ambiência Western
fora do coldre, a fresca, campesina e agradável sonoridade deste peculiar
quarteto de origem lusitana tem o dom de no nosso imaginário erigir e dirigir toda
uma imersiva narrativa cinematográfica, que nos coloca a trote pausado de um cavalo cansado pelo
arenoso solo de um infindável deserto bronzeado pelo intenso e ofuscante Sol
poente que se debruça e esbate no inalcançável horizonte. Uma musicalidade deveras
inspiradora, arrebatadora e visual – a fazer recordar os californianos Spindrift – à
qual nem o Quentin Tarantino ficaria indiferente. Lamentei profundamente
ter chegado ao recinto já quando estes quatro cowboys abandonavam o saloon
– deixando no seu interior um forte odor a pólvora, whiskey vertido e incontáveis corpos caídos de armas empunhadas – e se
perdiam no chamejante horizonte desértico. Seguia-se o volumoso, enérgico e
tumultuoso Skate Punk dos bracarenses Mr. Mojo que motivava nova
reaproximação da plateia até à frente do palco principal. E foi à instigante boleia
de duas guitarras erosivas, um baixo possante, uma bateria galopante e uma voz
gutural que os primeiros headbanging’s do dia ganhavam um aparatoso
protagonismo. Uma empolgante performance exemplarmente orientada a uma só
velocidade que atestara de adrenalina todos aqueles aos quais a poderosa ressonância
de Mr. Mojo alcançava. Um aplauso motivador a esta jovem banda portuguesa
que se adjectivara como o aperitivo perfeito para o que aí vinha: Petyr.
É justo começar por admitir que este quarteto californiano – sediado na
carismática cidade de San Diego e superiormente liderado pelo Riley Hawk (filho do
lendário pro-skater Tony Hawk) – recolhia para ele mesmo o estatuto
de banda que eu mais ansiava experienciar não só naquele segundo dia, mas no
conjunto dos três dias de SonicBlast. De influências apontadas aos
míticos Black Sabbath e aos norte-americanos Witch, os jovens Petyr
escudam-se num euforizante, tóxico, nebuloso e alucinante Heavy Psych
com indiscretas aproximações a um titânico, obscuro, luciférico e messiânico Proto-Doom
de tração setentista. Depois de em 2017 ter reverenciado o seu homónimo álbum
de estreia (review aqui), premiando-o mesmo com o título de melhor
registo lançado nesse mesmo ano (listagem aqui), e de no passado ano de
2018 ter replicado toda esta minha fascinação ao seu segundo trabalho de longa
duração ‘Smolyk’ (review aqui), era com o coração
taquicardíaco e membros convulsionados pela ansiedade que me firmava em frente
ao palco de olhar incendiado em entusiasmo. E o que se seguiu foi uma selvática
cavalgada esporeada por duas guitarras que se consolidavam na ascensão de intrigantes,
portentosos, rumorosos e inflamantes Riffs arábicos e dialogavam em trepidantes,
desvairados, excitados e atordoantes solos, um pulsante e possante baixo de
linhas sombreadas e carregadas a um hipnótico misticismo, uma bateria explosiva,
acrobática e altiva de ritmicidade imprópria para cardíacos, e uma voz ácida, ecoante,
penetrante e diabrina que emergia das abissais profundezas desta psicotrópica
absorção. Petyr ao vivo foi um implosivo petardo que brotara em cada um
de nós. Uma constante e sónica vertigem à qual tudo em mim obedecia. De
destacar ainda a inspirada reinterpretação de “Satori III” – originária
dos nipónicos Flower Travellin' Band (‘Satori’, 1971) que – aos meus
ouvidos – supera a original. Ao irrepreensível som de Petyr – num admirável
equilíbrio entre a pujança, a agilidade e o virtuosismo – foi-me demasiado
fácil imaginar Black Sabbath sobrevoarem os crepusculares céus da velha
Pérsia e por ela se deixarem influenciar. No final do concerto encontrava-me de
corpo cambaleante, visão embaciada, alma integralmente pasmada e expectativa
largamente saciada. Depois de todo aquele violento e exuberante exorcismo
sensorial que me fizera rasgar as vestes da lucidez, era tempo de regressar ao
campismo e procurar no conforto da tenda – bem como no fundo da geleira – toda a
estabilidade que Petyr me subtraíra e tardava em devolver.
Esquizofrenia, doce Paralisia e a pesada Volumetria
E como nem só de música é
feito o SonicBlast, a minha consciência despiu o seu traje arbitrário e
permitiu – sem sequentes juízos lesivos – que preenchesse as próximas horas com
entretidas e fraternas conversas entre novos e velhos amigos. Caras conhecidas
de almas aparentadas cruzavam-se comigo e a circunstância imposta pelo acaso
obrigava à enriquecedora troca de palavras e afectos. E não fosse a minha
imutável vontade de experienciar ao vivo pela segunda vez os finlandeses Kaleidobolt,
ainda agora lá estaria completamente sorvido nas estimulantes e movimentadas conversações.
O meu passo apressado locomovia-me na direcção do recinto principal à mesma
velocidade que os instrumentos deste dinâmico power-trio eram
executados. Depois de ter desconstruído e devidamente reverenciado os seus três
álbuns (‘Kaleidobolt’, ‘The Zenith Cracks’ e o seu
recentíssimo ‘Bitter’) e de no outono de 2017 os ter ouvido ao
vivo pela primeira vez na abertura para o concerto do tridente californiano Radio Moscow (review
aqui) estava novamente entusiasmado por testemunhar este mirabolante
embate entre um poderoso, furioso, enérgico e vigoroso Hard Rock de
influência clássica e um empolgante, oleado, rebuscado e magnetizante Heavy
Prog de essência setentista. E assim aconteceu. Iguais a si próprios,
os Kaleidobolt avançaram para uma performance verdadeiramente irrepreensível
onde a maestria foi executada a uma ferocidade estonteante e a uma agilidade
vertiginosa. A sua sonoridade intensamente extravagante – saturada de inesperadas
alternâncias rítmicas – é balanceada entre pacíficos momentos condimentados a
uma luxuriosa orientação jazzística que nos convidam a desmaiar as
pálpebras e a levitar a espiritualidade, e outros momentos atestados de pura e
desenfreada adrenalina que nos agridem, revolvem e centrifugam a alma. Contando
ainda com a inlusão da prontamente reconhecida e apaladada cover de “21st
Century Schizoid Man” (pertencente aos clássicos King Crimson,
1969) os Kaleidobolt despediram-se de Moledo de instrumentos ao
alto e debaixo de uma calorosa, ruidosa e merecida ovação. Repetentes no SonicBlast,
os polacos Belzebong subiam a um palco que bem conhecem com o seu
fumarento, pestilento, psicotrópico e luciférico Doom Metal embrumado e
enlameado por uma carregada sonoridade de tonalidade pantanosa, nebulosa, morfínica
e tenebrosa que provoca no ouvinte efeitos em tudo semelhantes aos do Tetraidrocanabinol
(mais comumente catalogado de THC). De semblantes pálidos, olhares
distanciados e troncos balanceados, a plateia respondia como podia perante toda
aquela tensa e monolítica reverberação transpirada do palco. Depois da impressionante
e inesgotável galopada promovida pelos enérgicos Kaleidobolt, os Belzebong
anestesiaram-nos e arrastaram-nos consigo para o lado eclipsado do empolgamento.
Submersos numa intensa e permanente narcose que nos climatizara e inebriara do
primeiro ao derradeiro tema, não foi nada fácil aceitar que o concerto havia já
terminado, seguindo-se uma demorada reactivação da lucidez sensorial. Tempo
para uma descontraída incursão até à zona de restauração e de regresso ao
recinto agendado para os históricos Orange Goblin. Capitaneada pelo impetuoso
colosso Ben Ward, esta incontornável banda londrina é desde há muito uma
das mais consagradas referências dentro do universo Stoner europeu, e o
concerto que se seguiu fez – uma vez mais – jus a esse título que merecidamente
ostenta. Foi com base no seu potente, expressivo e vibrante Stoner Metal
de vigorosa e estrondosa dimensão que o SonicBlast se transformara numa autêntica
arena onde populosos, ciclónicos e tumultuosos Mosh Pit’s borbulhavam dentro
daquele vulcânico caldeirão humano, enquanto que o Crowd Surf também era
uma válida manifestação na instintiva exteriorização do que é vivenciar todo o fulgor
de um concerto de Orange Goblin. De punhos cerrados e cervejas ao alto,
o eloquente vocalista Ben Ward acicatava todo um público afogueado pela exaltação.
Do palco eram libertados motorizados Riffs de fácil digestão e veneração,
e fora dele o ambiente era de um selvático frenesim. A par do que acontecera em
2017 aquando da sua estreia em Moledo (review aqui), o
quarteto inglês mostrou-se irredutível na arte de entusiasmar toda uma plateia
sedenta de algo assim. Com o apoteótico final de Orange Goblin, o meu
segundo dia de festival estava também findado.
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