Apesar das fortes previsões
de vento e chuva destinadas à freguesia de Moledo, raiava em mim todo um crescente e esplendoroso entusiasmo coligado com a inabalável convicção de que se avizinhava mais uma
inolvidável edição do festival SonicBlast Moledo. No final da manhã de
quinta-feira – de mochila atestada até ao limite das suas costuras, mala do
carro totalmente guarnecida, olhar cravado no firmamento em que o asfalto se
desdobrava até onde as pupilas perdem vivacidade, e num compenetrado processo
de auto-aceitação em relação à inevitabilidade de perder Jesus the Snake
– regressava a Moledo, renovando a sagrada peregrinação que desde há
muito se repete sem qualquer interrupção. Findados os cerca de 230 quilómetros
que separam a minha residência da meca ibérica do psicadelismo, debaixo
de um céu esperançoso onde tímidos raios solares tocavam ao de leve e aqueciam o negro alcatrão,
os meus receios climatéricos ganhavam uma monolítica volumetria na chegada à então pardacenta aldeia minhota. Sobrevoado e intensamente vigiado por uma opaca e
sisuda nebulosidade com credíveis promessas de fortes aguaceiros, o primeiro dia de SonicBlast
estava irremediavelmente fadado a decorrer numa atmosfera outonal em pleno mês
de Agosto. Depois de instalada a tenda num pequeno e pacato campismo privativo
próximo do recinto do festival, onde já muitos campistas se haviam antecipado e colhida a pulseira de acesso ao mesmo,
abatera-se uma repentina e incessante chuva diluviana que apanhara todos de
surpresa. Num misto de comodidade e empolgamento, e desconforto e prostração, a
crescente mancha de festivaleiros que se aglomerava à entrada do recinto principal
(onde por culpa da tempestade e pela primeira vez na história do festival
decorreriam todas as actuações do dia) ia dando sinais de uma evolutiva adaptação perante
aquele cenário adverso.
Com o céu embaciado e o solo molhado, o Verão abrigou-se no palco.
Foi já com as suecas MaidaVale
em palco – entregues à imerecida tarefa de rivalizar com a chuva e vento pela
conquista do protagonismo – que avancei até ao interior do recinto principal. Apreciador
confesso do seu magnífico álbum de estreia ‘Tales Of The Wicked West’
lançado em 2016 (review aqui) mas sem os mesmos sentimentos de
fascinação pelo seu sucessor, este quarteto de total dominação feminina e sediado
na cidade de Estocolmo era(-me) uma das principais atracções da tarde.
Com uma plateia ainda muito descompactada e descaracterizada, MaidaVale
não deixou de acalorar e perfumar os húmidos ares de Moledo com seu dançante, entusiástico,
bem-disposto e contagiante Psychedelic Rock de curvaturas serpenteantes e
essência revolucionária, motivando a aproximação ao palco dos mais audazes festivaleiros
a quem a chuva não parecia importunar. Uma performance de curta duração –
castrada pelo vigor da intempérie – mas que nos enfeitiçara e persuadira com o
seu místico manto primaveril. Seguiam-se os nipónicos Minami Deutsch com
o seu hipnotizante, meditativo e deslumbrante Krautrock que forçaram
todos os presentes a uma ligeira e entretida hipnose de cabeça pendulante e olhar
envidraçado sem permissão para pestanejar. Uma actuação que – a par da anterior
– ficara a perder não só pela pouca durabilidade da mesma, mas essencialmente
pelo défice de absorção que a sonoridade do colectivo japonês assim exige e lhe fora
ofuscada pela marcada presença do mau tempo.
Se não consegues derrotar o mau tempo, junta-te a ele.
Com o suave e indiscreto
decréscimo da luminosidade a celebrar a passagem crepuscular do dia para a noite, subiam a palco aqueles
que acabaram por perpetuar e coroar mesmo a sua exibição como uma das mais
singulares desta 9ª edição do SonicBlast: os noruegueses The Devil
and the Almighty Blues. A chuva parecia finalmente esmorecer e dar tréguas
perante os tantos impropérios a ela arremessadas pelos incontáveis
festivaleiros que lotavam a presente edição do festival. As nuvens de
tonalidade escurecida e feições ameaçadoras coligavam-se entre si, formando uma gigantesca, vaporizada e
fantasmagórica avalanche de nebulosidade que escorregava lentamente pelas proeminentes
montanhas circundantes para envolverem o palco principal. Amortalhados por essa
ambiência outonal, os The Devil and the Almighty Blues – munidos do seu
muito aclamado novo álbum ‘TRE’ (review aqui) –
arrancavam para uma performance verdadeiramente catártica. Fundamentados num majestoso,
obscuro, enigmático e cavernoso Heavy Blues de clara descendência Black
Sabbath’ica, estes vikings da era moderna hastearam em Moledo
todo um admirável repertório – revisitando todos os três cantos da sua
discografia – onde os seus característicos riffs oxigenados, entalhados
e conduzidos a uma enegrecida, desarmante e engrandecida nobreza, e em parceria
com os vocais melodiosos, roucos e liderantes forçavam todos os corpos
presentes a vergarem-se perante a sua vistosa soberania. Provavelmente o meu
concerto favorito do dia. Seguia-se a ocultista liturgia de Lucifer, mas
era hora de dar uso a um dos outros sentidos: o paladar. Deixando a intrigante
musicalidade desta banda multinacional (fundada em Berlim e
posteriormente transladada para Estocolmo) para segundo plano, avancei
de glândulas salivares em crescente actividade para a zona de restauração. A
chuva e o vento regressavam com impetuosidade, e a tensa e portentosa
reverberação Doom’esca dos escandinavos Monolord
teve de ser vivenciada num local afastado, abrigado e situado num ponto
sobranceiro e de visão privilegiada sobre todo o recinto principal, onde
dezenas de outros festivaleiros se refugiavam e reconfortavam. Iguais a si
próprios, os repetentes Monolord (no que a aparições em Moledo diz
respeito) desprenderam as suas pujantes, carregadas e colossais ressonâncias na
direcção da numerosa plateia que corajosamente subsistia em frente ao palco. Peso,
densidade e vigor representam a santa trindade que coroa a impactante
sonoridade deste possante trio sueco, e mesmo eu estando a uma considerável distância do
epicentro, termino o concerto integralmente embebido num intenso torpor.
Depois da tempestade, veio a bonança.
Earthless
motivava uma nova reaproximação dos muitos festivaleiros até então abrigados da
chuva, e eu não fui excepção. Presentes no line-up do SonicBlast
pelo segundo ano consecutivo, era de esperar que subissem a palco com uma setlist
alternativa à demonstrada na passada edição de 2018 (review ao concerto aqui)
mas os príncipes californianos acabaram por desdobrar uma exibição demasiado aparentada à
já ostentada aquando da sua estreia em Moledo. De suspeitas parcialmente
defraudadas, mas de espírito revigorado com o cessar da chuva, deixei-me
embalar à boleia da agitada ondulação corporal que as sónicas jam’s de Earthless
provocavam no populoso e revoltoso auditório. Numa eloquente performance
balanceada entre o ‘From the Ages’ (2013) e o seu mais recente álbum
‘Black Heaven’ (lançado em 2018 e elogiado aqui), este
influente tridente de San Diego presenteara todos aqueles festivaleiros
de coração palpitante e olhar chamejante com o seu excitante, portentoso e alucinante Heavy Psych
de onde se desenraíza e desabrocha todo um vendaval de solos ziguezagueantes, ciclónicos,
caóticos e atordoantes – de extensão e toxicidade a perder de vista – empolados
por uma habilidosa, frenética, estética e tumultuosa bateria de inesgotável
fôlego, e sombreados por um baixo hipnótico, fibrótico e diligente que assegura
que nenhum de nós se esquece de sussurrar as notas do Riff-base. De Earthless destilámos
uma imaculada, irrepreensível e renovada lição de sinergia, virtuosismo e
energia conjugados quase de forma erótica. Mas como a Escandinávia era
detentora da maior dose de protagonismo deste primeiro dia de festival, os tão
ansiados Graveyard perfilavam-se em palco de instrumentos empunhados e
sorrisos atirados na direcção de um público verdadeiramente extasiado. E foi embrulhados
no seu requintado, deleitoso, libidinoso e perfumado Heavy Blues de arranjos desarmantes e indiscretas feições revivalistas que nos deixámos dissolver, enfeitiçar e
enternecer na cuidada e sublimada musicalidade deste reverenciado quarteto sueco. De olhar
petrificado e semi-cerrado, cabeça pausadamente balanceada de ombro a ombro,
sorriso imortalizado no rosto, e alma ensolarada e mitigada pela melosidade
deste néctar via auditiva, fomos massajados e canonizados pela edénica e
embriagante suavidade dos acordes que sobrevoam os floridos territórios de Graveyard.
Um verdadeiro oásis sensorial onde todos nós nos banhámos e tonificámos depois
de um dia exaustivo. Assim que os instrumentos foram relegados ao silêncio,
deixei-me por fim derrotar às mãos do cansaço e verti todos os derradeiros resquícios de
lucidez num profundo universo onírico. O primeiro dia estava (para mim) esgotado e o segundo encerrava um renovado entusiasmo.
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