Depois de uma noite lúcida e
barulhenta – celebrada nos mais diversos idiomas e das formas mais
extravagantes possíveis – a manhã de Moledo era governada por uma contemplativa
e apaziguante quietude só interrompida pelos estridentes ruídos dos fechos
éclairs das muitas tendas plantadas no parque de campismo. O calor
intensificava-se e o ambiente no interior das mesmas era cada vez mais
irrespirável. As cabeças sonolentas de olhar temulento e narinas dilatadas surgiam
de dentro das tendas inalando a refrescante brisa matinal que se passeava no
exterior, e os mais corajosos cambaleavam decididamente até aos chuveiros de
toalha apoiada no ombro. O derradeiro dia da presente edição do SonicBlast
começava a configurar-se e todos os olhos atropelavam as horas da manhã para
focarem o inicio da tarde. Depois de uma breve e tonificante caminhada junto à
praia, um relaxado almoço numa pizzaria local e uma cerveja fresca bebida numa
esplanada arejada, dirigi-me ao recinto do festival para presenciar os primeiros
concertos do dia. Avizinhava-se uma tarde e noite repletas de concertos
memoráveis e a expectativa agigantava-se em cada um dos muitos festivaleiros
presentes em Moledo.
Vinnum Sabbathi | 14:25 | Palco Piscina
Provenientes da longínqua Cidade do México e de instrumentos
apontados ao vertiginoso e incomensurável Cosmos, o quarteto mexicano Vinnum Sabbathi provocara em cada um de
nós a sagrada levitação da alma rumo à profunda escuridade espacial, deixando
para trás um corpo totalmente inanimado. Baseada num sombrio, poderoso, morfínico
e frondoso Psych Doom brilhantemente
temperado por um envolvente, misterioso, viajante e brumoso Space Rock que nos metamorfoseia em aventurosos
astronautas, a lisérgica, portentosa e nebulosa sonoridade de Vinnum Sabbathi tem o dom de nos
embrenhar de poeira estelar e arremessar pelos esplendorosos firmamentos da
verticalidade cósmica. O numeroso público – de semblante caído, corpo
baloiçante, e olhar lapidificado – estava verdadeiramente rendido a toda aquela
etérea e fascinante odisseia admiravelmente orientada pela formação mexicana. A
guitarra desenvolvia riffs possantes,
obscuros e carregados, o baixo ondulava-se pesada e intensamente em linhas
sólidas e torneadas, a bateria explodia em enérgicas e ofegantes incursões, e o
sintetizador munido de samples
celestiais autentificava toda esta digressão pelos insondáveis domínios
situados no lado eclipsado da Lua. No final a banda exteriorizava o seu
profundo agradecimento a tudo e a todos aqueles que haviam tornado possível o
concerto de Vinnum Sabbathi no SonicBlast e viraram costas à plateia
debaixo de um animado e demorado aplauso.
Blaak Heat | 16:15 | Palco Piscina
O bafo solar intensificava e
bronzeava toda aquela multidão que lotava o recinto da piscina, enquanto que
uma das minhas bandas favoritas subia ao palco para instaurar em todos nós uma
sagrada e resplandecente aura pérsica. Com as raízes divididas entre a França e os EUA, esta encantadora formação desenvolve um místico, hipnótico e
apaixonante Psych Rock de ares
arábicos que se entrelaça num requintado, fresco e estarrecedor Surf Rock capaz de nos remeter para
firmamentos desérticos que se desdobram infinitamente debaixo de um Sol
vigilante que nunca se põe. Numa fugaz digressão pelos últimos trabalhos da
banda e uma pequena amostra do novo álbum que será lançado ainda este ano, os Blaak Heat envolveram, seduziram e
entorpeceram Moledo com a sua sonoridade exótica regada de mescalina. Vivia-se
uma perfeita ambiência religiosa e a nossa espiritualidade banhava-se num
edénico oásis. As guitarras faraónicas serpenteavam-se por entre riffs intrigantes, enigmáticos e
dançantes e solos extraordinários, inflamantes e sumptuosos, o baixo murmurante
compenetrava-se em linhas oscilantes, corpulentas e magnetizantes, a voz macia
e espectral sobrevoava livremente todo o instrumental e a estimulante bateria
conduzia com leveza e habilidade toda esta prazerosa e imaculada peregrinação
pelos sinuosos desfiladeiros da alma. Para mim, Blaak Heat foi – a par de Black
Bombaim – o melhor concerto vivenciado no palco piscina.
Acid King | 21:15 | Palco Principal
De San Francisco (Califórnia,
EUA) estavam aí os lendários Acid King e na plateia pressentia-se
que deles viria uma das performances mais avassaladoras da presente edição do SonicBlast. E não estava enganada: este
poderoso power-trio fielmente
dedicado ao lado mais nebuloso, arrastado e psicotrópico do Doom Metal brindou todos os presentes
com uma tirânica, lenta e potente cavalgada que – sem qualquer timidez – nos
atropelou a lucidez e embriagou a alma. Os riffs
reverberantes, sombrios e inquisidores faziam estremecer todos os muitos corpos
oscilantes que se debatiam como podiam perante toda aquela pujante descarga Sabbath’ica. A musculada e liderante guitarra
de Lori S. soltava uma sísmica,
cáustica e narcotizante ressonância que nos absorvia, respirava e dominava com
firmeza e influência, o baixo sombreava e revigorava todos os riffs com as suas linhas atléticas,
corrosivas e torneadas, a bateria incendiava-se em ardentes, pesadas e
empolgantes investidas, e a voz límpida, destemperada e visceral ecoava por
entre a densa, ébria, demoníaca e brumosa radiação. As nossas cabeças sonolentas
sacudiam-se pesadamente à boleia de toda aquela titânica galopada e vivenciávamos
uma intensa narcose que só se desvaneceu quando os instrumentos se calaram e os
monolíticos amplificadores se desligaram debaixo de um aplauso ensurdecedor. Acid King foram autenticamente
demolidores acima de palco. Longa e gloriosa vida ao Rei.
Colour Haze | 22:35 | Palco Principal
Era a terceira vez que via Colour Haze ao vivo mas o meu coração
comportava-se como se da primeira se tratasse. A influente e afamada banda
alemã que desde os 90’s surpreende o panorama underground do Rock europeu pisava pela primeira vez na sua
história um palco português e fora dele pressentia-se que a estreia desta
formação germânica em território nacional ficaria imortalizada na mente de
todos os afortunados que estavam prestes a testemunhá-la. Depois de um pequeno
atraso no começo da actuação para que o seu técnico de som pudesse calibrar da
melhor forma todos os instrumentos, Colour
Haze deu então início àquele que viria a tornar-se indubitavelmente não só o
melhor concerto do dia, como muito provavelmente o melhor de toda edição do SonicBlast. Ao primeiro contacto com o
tema inaugural “She Said” Moledo mergulhou num profundo e intenso êxtase
nutrido pelo lado mais requintado, mélico e apaixonante do Psych Rock. Vivia-se uma ambiência intensamente paradisíaca
sublimemente condimentada pela harmoniosa fragância exalada do palco e na
instintiva resposta o público siderado dançava detidamente de olhar selado,
sorriso esculpido no rosto e narinas dilatadas. O sonho acontecia ali mesmo e
todos nós fazíamos parte dele. Stefan
Koglek manuseava a guitarra com uma magnificência incrivelmente paralisante,
florescendo riffs desmesuradamente sumptuosos,
primorosos e arrebatadores e desarmantes, estonteantes e inimagináveis solos
capazes de nos atestar de uma insuportável euforia. O baixista Philipp Rasthofer de pálpebras cerradas
e profundamente concentrado nas suas linhas oscilantes, volumosas e dançantes
sombreava na perfeição o riff base,
enquanto que o baterista Manfred Merwald
se transcendia em deliciosas, inventivas e talentosas acrobacias que entupiam
todas as zonas erógenas da nossa espiritualidade. A plateia estava
completamente deslumbrada com toda aquela magia em estado musical. Depois de 5
temas tocados em pouco mais de 1h de duração, o power-trio dedicou uma prolongada vénia anunciando a sua despedida,
mas público inconformado com o fim do concerto suplicava para que a banda
regressasse ao palco. O mesmo não sucedeu mas para trás ficara um dos mais
fascinantes concertos que presenciara em toda a minha vida. No final os meus
ouvidos salivavam e a minha alma estava embaciada por uma embriagante sensação
de bem-estar. Moledo inalara uma das mais encantadoras fragâncias sonoras de
sempre e a ressaca da mesma ameaça agora resistir à força do tempo – perdurando
na nossa memória pela vida fora – pois nem o esquecimento se esquecerá de a
lembrar. Colour Haze foi uma
autêntica ode epicurista.
Orange Goblin | 00:00 | Palco Principal
Seguiam-se os históricos Orange Goblin com o seu entusiástico,
poderoso e vibrante Stoner Metal carburado
a alta rotação. Assim que a banda londrina subiu ao palco sentiu no imediato
que era uma das mais sérias responsáveis pela grande multidão que se encolhia
no recinto principal. Este quarteto inglês liderado pelo extravagante Ben Ward – que passara todo o concerto
a instigar os seus fãs – arrancou para uma exibição tremendamente imprópria
para cardíacos. O ritmo do concerto nunca conheceu um travão e a ruidosa plateia
exteriorizava de forma exuberante toda a adrenalina sentida. Fundamentados em riffs ferozes que nos desgastam e
euforizam, os Orange Goblin foram
verdadeiramente irrepreensíveis acima de palco. Nenhuma outra banda havia
comunicado de forma tão calorosa com o público e o mesmo retribuía com variados
focos de desgovernado alvoroço. A sonoridade fervorosa e contagiante da banda inglesa
a isso nos obrigava e toda a plateia era levada nesta violenta torrente. Foi à excitante
boleia de uma guitarra que se cimentava em riffs
opulentos e volumosos e se superava em solos caóticos e extraordinários, um
baixo potente de linhas carregadas e vociferantes, uma bateria explosiva e revoltosa
de ritmicidade atordoante, e uma voz cavernosa, colérica e intimidatória que
todos nós entrámos em estado de ebulição. Orange
Goblin foi uma das actuações mais frenéticas não só da presente edição mas
da história recente do SonicBlast. No
final do concerto estávamos todos combalidos, ofegantes e ainda atordoados mas
havíamos sobrevivido a toda aquela enfurecida avalanche de reverberação que
fizera estremecer a pacata freguesia de Moledo.
A presente edição do
festival SonicBlast foi uma renovada
experiência marcante. Este é um festival de amor à primeira visita que tem
abraçado e conquistado cada vez mais público. São vários anos de investimento
no mesmo viveiro musical e essa ousada persistência faz hoje do SonicBlast um dos festivais mais relevantes e apaixonantes da Europa dentro da scene que nos
move. O meu sincero obrigado à organização por isso.
*Um agradecimento especial
ao Bruno Pereira (Wav.) pela cedência do registo fotográfico.