No passado domingo (dia 16 de
Junho) fiz a minha terceira incursão (em dois anos) à encantada Taberna Belfast
em Santa María del Páramo, León (Espanha). Já a Nádia era estreante nestas
andanças. O sol sobrevoava as nossas costas com enorme esplendor, o céu
ostentava boa saúde, e no horizonte habitava uma sabida noite notável ao som de
Blaak Heat Shujaa e Spindrift. De olhar refastelado no negro alcatrão que nos
conduzia ao velho oeste, e de corações a transbordar de ansiedade e
expectativa, lá chegámos ao primeiro ponto de paragem obrigatória da nossa
rota: a familiar Puebla de Sanabria. Tempo para mais uma cerveja pedida em “portunhol” e uma caminhada revitalizadora
junto às margens do rio Tera. O tempo resguardou-se à sombra do esquecimento e
foi já com alguma urgência que regressamos à estrada. De mãos cerradas no
volante e a Nádia de atenção atracada nos mapas, lá devaneamos pelas estradas
incertas que nos levariam (ou não) à desejada La Bañeza, cidade vizinha de
Santa María del Páramo. Confissão: sim, nem à terceira vez me poderei
vangloriar de ter chegado ao destino sem ter feito uns quantos quilómetros
estranhos à rota previamente delineada. Depois de umas quantas inversões de
marcha, podíamos, agora, suspirar de alívio porque estávamos novamente no
caminho certo.
De salientar a minha paixão pela estrada que liga Puebla de Sanabria a La Bañeza. Rectas que se desvanecem no efeito refractor do sol, paralelismos extasiantes, ora compostos de imponentes e fartos carvalhos, ora de infinitas planícies onde as cores se abraçam entre si e o sol do fim da tarde se esperneia ao comprido. É o visceral entorpecimento dos sentidos ao longo de quase 70 quilómetros. De vidros abertos e cabelos entrelaçados com o vento lá chegamos a La Bañeza, a cidade da divagação. E, como não poderia deixar de ser, mais tempo e paciência perdidos em busca da tão almejada placa que nos afunilaria até Santa María del Páramo. Essa falta de paciência foi levada de tal forma à exaustão, que foi mesmo necessário o uso de um GPS para nos libertar das consistentes amarras de La Bañeza. Já o sol se debruçava acima das montanhas quando chegámos a Santa Maria del Páramo.
Foi tempo de calar os nossos
estômagos ruidosos com o que de melhor habitava a mala do carro e caminhar até
à Taberna Belfast onde pude dar um renovado “hola!” à Eva. Lá ancoramos os
nossos cotovelos no balcão e brindamos aquele momento com cerveja Mahou. Estava
um contagiante ambiente festivo tanto no interior quanto na esplanada do bar. A
noite suspirava brisas quentes e incitava a beber mais cerveja fria. Mal
havíamos pedido a segunda cerveja da noite já Blaak Heat Shujaa subiam ao
placo e davam inicio aquele que seria um dos melhores concertos da minha vida. Mal
podia esperar por ouvir o tremendo “Edge of an Era” tocado ao vivo. Blaak Heat
Shujaa superaram as minhas expectativas mais exigentes e arrancaram com um dos
concertos mais pujantes que vira até então. São verdadeiros búfalos que dominam
os riffs mais selvagens do Rock Psicadélico. A sua sonoridade exige papilas
gustativas apuradas e uma capacidade de percepção bastante requintada para a frenética
perseguição a estes sons que viajam a velocidades alucinantes e fazem cócegas à
compreensão humana. Não precisei de esperar muito até que fosse tocado aquele
que é - para mim – o tema do ano “the
obscurantist fiend (the beast pt. I)” e me ter proporcionado um dos
momentos introspectivos mais prazerosos de que tenho memória. O brilhante “Edge
of an era” foi tocado praticamente na sua totalidade e alguns temas do seu
disco ancestral também foram revisitados. Thomas Bellier e a sua guitarra são
elementos de um só corpo apenas. Um verdadeiro eremita que nos dedilha narrativas
embebidas em peiote e sujeita a vivê-las com exaltação. Michael Amster é um
autêntico monstro (no sentido positivo da palavra) na bateria. Parece fazer o
impossível e a uma velocidade frenética. Nunca a agressividade e a técnica
casaram tão bem quanto o fazem nas baquetas de Michael Amster. Foi uma
performance verdadeiramente estonteante do inicio ao fim do concerto. Ao
volante do baixo estava o Antoine Morel-Vulliez, um dos baixistas que mais me
entusiasmou pela sua enorme sensibilidade em dedilhar fragmentos sonoros dos
mais hipnóticos e delirantes de sempre. E é esta cuidada exploração do
instrumento de quatro cordas que nos deixa de pálpebras cerradas e a viver uma
constante experiência espiritual. Trouxe de Espanha este colossal concerto do
trio parisiense bem atrelado à memória (e a Nádia também).
Seguiam-se os cowboys de
guitarras no coldre. Depois de os ter visto abrir para Dead Meadow no Porto,
este seria o meu segundo duelo com a banda norte-americana. E o meu segundo duelo
perdido, diga-se. A música de Spindrift fala a língua do deserto e de quem o
cruzou com maestria e bravura. Acredito que as suas melodias são capazes de fazer
cair lágrimas nostálgicas a um John Wayne e a um Clint Eastwood. Fossem estes
Spindrift naturais do tempo onde o cinema Western cavalgava abundantemente pela
sétima área, e o próprio Enio Morricone teria o seu trabalho posto em causa.
Estes cowboys agora de guitarras em punho transformaram a Taberna Belfast num
autêntico Saloon. A harmonia estava estatelada no sorriso de quem os ouvia. Os
pés batiam no soalho em comunhão com as batidas da bateria, o entusiasmo era
crescente e toda a plateia foi brindada com as mais belas e apaziguantes narrativas
contadas por quem se equilibra acima da albarda. Viajamos todos lado a lado com
Spindrift, por entre imponentes Saguaros, tempestades de areia e sob um sol
abrasador onde só a sombra da dança circular dos abutres contrastava no solo.
Foi um concerto lindíssimo recheado de momentos divertidos proporcionados por
estes senhores de texanas e chapéus de aba larga. Foi também um adeus custoso
mas necessário. Demos um abraço à Eva, regressámos ao carro e fizemo-nos
novamente à estrada soltando um véu de saudade que aumentava de tamanho
conforme nos afastávamos da Taberna Belfast.
Certamente que falaremos dessa
noite aos nossos filhos.
Pelo menos, a lembrança fala-me todos os dias
dela.
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