Deixando as
preocupações pandémicas – bem como os guarda-chuvas molhados – às portas do Hard
Club, o público compareceu no passado domingo em grande número para lotar a
sala e experienciar ao vivo os nossos The Black Wizards, as suecas MaidaVale,
e uma das bandas mais excitantes das duas últimas décadas, aqui em estreia no interior de uma sala portuguesa, os californianos Earthless num evento promovido pela Garboyl Lives.
A feitiçaria afrodisíaca de The Black Wizards
Regressados de
uma pequena tour com ponto de paragem em seis países europeus, os já
carismáticos The Black Wizards subiam a palco – numa remodelação estrutural
que os reduzira de quarteto a tridente – para principiar uma noite que viria a
tornar-se inolvidável. De copos de cerveja transbordante, olhar cintilante e um
genuíno sorriso estampado no rosto, pairava na atmosfera uma generalizada, palpável
e incontrolável satisfação de regressar à catarse que é vivenciar música ao
vivo e, que durante tanto tempo, disso estivemos privados. Foi já com uma sala
bastante populosa que o agora power-trio português – numa forma
invejável, devo antecipar – dava início à sua feitiçaria de essência afrodisíaca.
De bússolas apontadas a um empolgante, vulcânico, ritualístico e embriagante Heavy
Psych que se aventura e desventura pelas idosas, sinuosos e poeirentas estradas
de um serpenteante, libidinoso, lustroso e contagiante Heavy Blues, a
sonoridade – trajada a vistoso revivalismo e fervilhada em efeito Fuzz –
destes três feiticeiros de instrumentos submersos num caldeirão em chamejante
ebulição provocaram em todos nós todo um extasiante deslumbramento impossível de
quebrar. Nas asas de uma guitarra tóxica que se balanceia e formoseia em estonteantes
Riffs de onde são vertidos alucinógenos solos, um imponente baixo Rickenbacker
reverberado a linhas fibrosas, uma bateria aparatosa de baquetas em polvorosa,
e melodiosos vocais que sobrevoam o restante instrumental, viveu-se uma perfeita
e absorvente comunhão com esta talentosa banda que decidira – e bem! – coroar a
recta final da sua gloriosa performance com uma surpreendente versão cover
da ilustre e majestosa “21st Century Schizoid Man” originária dos
titânicos britânicos King Crimson, que não deixara ninguém indiferente.
O místico magnetismo de MaidaVale
Seguia-se o quarteto escandinavo MaidaVale com
o seu imersivo misticismo que prontamente inundara e conquistara toda a densa
plateia que se debatia prazerosamente entre as paredes do Hard Club. De
olhar selado, cabeças meneantes, espírito levitante e corpos dançados à irresistível boleia destas
suecas, fomos farolizados e viajados até aos braços do transe espiritual. Saltitando
entre os seus dois desiguais trabalhos de estúdio e combinando um excitante, interventivo,
incisivo e ofuscante Psychedelic Rock de intensa comoção com um hipnotizante,
ritmado, oleado e embalante Krautrock empoderado de sedução, esta turma
feminina banhara todas as zonas erógenas do nosso cérebro e instaurara no
nosso espírito toda uma inextinguível sensação de pleno bem-estar. Numa
perfeita simbiose entre a profética guitarra de Riffs encaracolados, o baixo
deliciosamente groovy de linhas pulsantes, a expressiva bateria de
galope perseverante, o mágico sintetizador de fantasmagoria electrónica, e os irreverentes
vocais de uma líder revestida com vistosos adereços orientais, as MaidaVale
fizeram daquele palco um verdadeiro altar comemorativo de uma nirvânica cerimónia à qual
ninguém se recusara comungar. Transpirados, fascinados e firmemente atrelados à
endeusada luminescência difundida pela banda enraizada na cidade-capital de Estocolmo,
todos nós purificámos e canonizámos as nossas almas sedentas por experienciar algo
assim. MaidaVale foi uma experiência verdadeiramente balsâmica, ataráxica
e gratificante.
O escapismo
sónico dos míticos Earthless
Foi debaixo de uma ruidosa chuva de aplausos que os
californianos Earthless subiram a palco, e fora dele o entusiasmo entrava
em vibrante erupção. Seguiu-se a comunicação com Houston e iniciada a
contagem decrescente para a bombástica propulsão locomovida a um sinestésico Heavy
Psych. E se aos primeiros acordes de natureza reflexiva – florescidos da
guitarra Hendrix’eana de Isaiah Mitchell, sombreados
à distância pelo quente baixo de Mike Eginton e diligenciados apenas com
o olhar do baterista Mario Rubalcaba – todos nós tombámos o queixo sobre
o peito e mergulhámos nas profundezas da letargia, o que se seguiu foi toda uma
indomesticável turbulência, sobreaquecida a selvática euforia, que nos embalara
na vertigem e arremessara violentamente para a espessa negrura que habita a interminável
vacuidade cósmica. Driblando a gravidade dos corpos celestes que vão brotando
no horizonte, resvalando pelas costuras da sanidade mental, e fecundando fantasmagóricas
poeiras estelares de aroma canábico, as inventivas, narcotizantes, estimulantes
e evolutivas jams instrumentais de Earthless – superiormente norteadas a paranoia
nipónica, extravagância Jimi Hendrix’eana e trevosos ecos Black
Sabbath’icos – levaram toda a plateia aos píncaros da loucura.
De cabeças voadoras, olhares eclipsados e corpos a embaterem entre si, iam-se
agigantando tumultuosos ciclones no público, bem como corpos levados na crista
da onda humana. Vivenciava-se, portanto, todo um sísmico frenesim de visões
caleidoscópicas e escapismo sónico com o epicentro localizado na ácida guitarra
de Isaiah Mitchell que exorcizava e vomitava intermináveis solos de toxicidade
a perder de vista, no baixo compenetrado de Eginton que soletrava repetidamente
o Riff-base, e na endiabrada bateria do skater Mario Rubalcaba
que bombardeava todo este electrizante tornado de endorfinas. De destacar ainda
o encore – motivado pelos incessantes clamores de uma ruidosa plateia de
ânsias à flor da pele – que trouxera a palco o “seu” clássico “Cherry Red”
(tema originário dos britânicos The Groundhogs) a coroar com a “cereja
no topo do bolo” uma performance insuperável. Earthless foi demolidor. Uma
psicotrópica efervescência que nos incendiara do primeiro ao derradeiro minuto.
Uma mastodôntica avalanche que nos atropelara e soterrara sem qualquer misericórdia.
Quando os fumegantes amplificadores se desligaram e os chamejantes instrumentos
se calaram, reinou na atmosfera um atordoamento dos sentidos que nos dificultara
a saída da sala. Não foi fácil conviver com o silêncio cru que se seguira e
aceitar que um dos mais impactantes concertos das nossas vidas havia terminado.
Antes de virar as costas ao Hard Club, foi igualmente gratificante “tertuliar” com as diversas
caras amistosas que fui encontrando e reencontrando por ali. Mais uns brindes
de cerveja entre amigos, um olhar planador pela mesa do merch, e uns derradeiros
abraços com a garantia deixada de um “até já”. Porque afinal de contas, falamos
todos a mesma língua.
P.S.: Fotografias
gentilmente cedidas pelo amigo Bruno Pereira / Wav.
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