Dois anos de penoso jejum motivado pela pandemia (algo ímpar no historial do festival), a alteração da sua morada de residência para a localidade vizinha de Vila Praia de Âncora, uma admirável ementa musical de esfregar repetidamente os olhos para conferir a sua autenticidade e o tão ansiado reencontro com tantos e tantos amigos feitos da incurável e insaciável paixão pela música que nos é transversal. Tudo isto contribuiu para que o ponteiro do meu entusiasmo dedicado à 10ª edição do SonicBlast estivesse há muito colado no zénite das rotações. E foi na culminância dessa inquietude que na manhã de quinta-feira – de depósito e mala do carro atestados – me fiz à estrada. Chegado ao destino, onde reluzia um tímido Sol de bafagem morna e vagueava uma fresca aragem de condimento oceânico, apressei-me a juntar a uns amigos numa casa em frente à praia onde iria pernoitar durante aqueles três dias. Num olhar mais demorado e indagador através da janela pude cimentar a noção de que aquela bonita vila costeira de Âncora estaria melhor preparada – quando em comparação com a pequena freguesia de Moledo – para receber e fazer crescer este festival que me é tão especial. E bastou mesmo uma passeata pela longa e movimentada marginal que serpenteia as delimitações do dourado areal da Praia da Duna do Caldeirão para que essa noção se convertesse em certeza. Incontáveis bares, restaurantes e alojamentos locais davam e recebiam vida. Testemunhava-se toda uma palpável simbiose entre os habitantes de Vila Praia de Âncora, os muitos turistas que ali faziam praia e os milhares de festivaleiros de múltiplas nacionalidades que preenchiam as movimentadas e ruidosas esplanadas. Tendo como farol sonoro as encorpadas ressonâncias provenientes do novo recinto do SonicBlast a compassar e magnetizar a minha apressada marcha, era hora de acorrer ao festival. Apesar dos noruegueses The Devil and the Almighty Blues estarem em palco a hastear bem alto o seu ostentoso, sedutor e imperioso Heavy Blues de encarvoada maquilhagem Proto-Doom, as muitas novidades no recinto reclamavam para si mesmas toda a minha atenção. E foram muitos os upgrades para esta edição comemorativa dos 10 anos de SonicBlast. Desde logo, a dilatação considerável do novo recinto face às originais de Moledo, onde os palcos principal e secundário se perfilavam lado a lado, passando pela muito bem arrumada e aprumada zona de restauração onde estava anexado um terceiro palco de menores dimensões, a diversidade de tendas alusivas à venda de música em formato físico, t-shirts e outros acessórios de moda, etc. Pela negativa apenas a ausência de sombras no recinto. Concluída a relaxada missão de reconhecimento no novo domicílio do SonicBlast, era tempo de confraternizar com os muitos rostos familiares, bem como com tantos outros que me eram estranhos, mas que me reconheciam através do El Coyote, que iam surgindo no meu caminho.
Dia 1 // King Buffalo
É justo
começar por dizer que do primeiro dia de festival, os SLIFT colhiam para
si os maiores anseios de uma plateia numerosa que se ia consolidando em frente
ao palco principal, e assim que se ouviram e reconheceram os primeiros acordes
de “Ummon” (tema que dá nome ao seu último álbum. E que álbum.)
sentiu-se uma generalizada sensação de crescente euforia que nos preparava para
desancorar os corpos e soltar os pescoços no iminente clímax logo ali ao virar
da esquina. Com uma presença bombástica acima de palco e inflamados por um
borbulhante, heterogéneo e fumegante cocktail sonoro de onde facilmente
se apalada um envolvente, hipnótico, anestésico e fascinante Krautrock
de pulsação CAN’ica, um viajante, entusiástico, exótico e
provocante Space Rock de ressonâncias Hawkwind’eanas,
e ainda um furioso, efervescente, escaldante e revoltoso Garage-Punk –
de electricidade Heavy Psych – esporeado à boa moda dos californianos Fuzz,
os SLIFT arrancaram para uma apoteótica performance que não deixara
ninguém recostado à indiferença. A sua sonoridade flamejada pelas
incandescentes fornalhas estelares que reluzem na medula do abissal negrume
cósmico, tem a capacidade de nos prender, amortalhar e narcotizar numa edênica
e encantadora dormência que nos inunda os sentidos, e desenraizar da gravidade
terrestre, catapultando-nos numa alucinante, enlouquecedora e euforizante
vertigem, driblando o abraço gravitacional de todos os astros suspensos no
horizonte e resvalando nas costuras fronteiriças do espaço sideral. Uma
mística, sónica e absorvente propulsão carburada por uma guitarra sulfurosa que
se manifesta em vulcânicos, dominantes, intrigantes e messiânicos Riffs
abrasados pela distorção urticante, de onde desaguam solos ecoantes,
alucinógenos, ácidos e atordoantes, um murmurante baixo de linhas oscilantes, elásticas,
magnéticas e dançantes, uma bateria dinâmica de rumorosa, intensa e aparatosa
explosividade, um alienígena sintetizador, criador de uma adorável atmosfera SCI-FI,
e ainda uma voz gritada que lidera com vistosidade toda esta evasão
consciencial. No final o atordoamento sentido fora do palco foi geral.
Liderados pelo talentoso multi-instrumentista norte-americano Parker Griggs (guitarrista e vocalista de Radio Moscow), os bem-dispostos El Perro subiram a palco com um refrescante, sumarento e revitalizante cocktail sonoro de onde sobressaem um dançante, lubrificado, torneado e provocante Blues Rock de contagiante balanço Boogie, um tropical, estival, colorido e açucarado Psychedelic Rock de sotaque latino, e ainda um ritmado, exótico, afrodisíaco e bronzeado Funk Rock de estirpe setentista. Bamboleado por um delicioso, bem-disposto e libidinoso groove de clima veraneio que sobreaqueceu, inquietou e embeveceu os muitos ouvintes que o vivenciavam com um inapagável brilho no olhar, o quinteto El Perro envaideceu-se num carnavalesco Samba onde desfilaram clássicas influências como Jimi Hendrix, Funkadelic, Santana e ZZ Top. A sua sonoridade picante, sensual e contagiante obrigou-nos a dançá-los – de forma detida e desinibida – do primeiro ao derradeiro tema. Transpirados, buliçosos e excitados pela esfuziante fogosidade que chamejou todo este concerto, fomos centrifugados à estonteante e caleidoscópica boleia de duas guitarras apimentadas que rugiam vulcânicos, serpenteantes e empolgantes Riffs de onde eram uivados e esvoaçados, venenosos, espaventosos e alucinados solos, um baixo baloiçante de linhas sinuosas, inchadas e ostentosas, uma bateria arrojada – em harmonioso companheirismo com uma festival e sensacional percussão de arrojada natureza tribal – de dinâmica, entusiástica e desembaraçada ritmicidade, e uma voz felina de pele abrasiva, áspera e urticante. El Perro foi um orgásmico bacanal de colorida efervescência e vivaz comoção, e, indubitavelmente, um dos mais memoráveis concertos por mim testemunhados durante todo o festival.
Foi já com a
noite a tingir os céus de Vila Praia de Âncora que os feiticeiros Witch
entraram em palco. Na plateia os corpos iam-se perfilando ombro a ombro, de pequenos,
mas resolutos passos que os aproximavam progressivamente do palco, olhares
afogueados pelo imoderado contentamento de assistir ao vivo a uma das mais históricas
e estimadas bandas da scene, e formando, assim, uma populosa moldura
humana de entusiasmo à flor da pele. Intoxicados por um borbulhante caldeirão
de esverdeada exalação e magmática erupção – onde é cozinhado e remexido um narcotizante,
ácido, delirado e bruxuleante Heavy Psych de virulenta, dramática e
pestilenta perversidade Proto-Doom’esca – todos nós
rodopiámos a cabeça, revirámos os olhos e testemunhámos na primeira pessoa o abalo
sísmico da febril adrenalina. Na génese desta poderosa feitiçaria que tomara
conta de nós durante uma hora estão duas guitarras sisudas que se avolumam na
ascensão de Riffs rugosos, funestos e montanhosos, e se endemoninham na
centrifugação de solos trepidantes, venenosos e alucinantes, um baixo opressivo
de linhas tesas, coesas e intimidantes, uma bateria intempestiva de galope
possante, buliçoso e empolgante, e vocais azedados, enregelados e espectrais.
Numa digressão pelos seus dois únicos álbuns lançados até então, os
norte-americanos Witch guardaram todos os seus trunfos para a recta
final com a inclusão de alguns dos mais populares temas provenientes do seu
registo homónimo. Adivinhava-se um final triunfante, e assim foi com a irrepreensível
execução da implacável “Seer”, fazendo rasgar as vestes da nossa
sanidade mental e elevando-nos aos infernais píncaros da euforizante loucura. Foi
um concerto do tamanho do carisma que os reveste, e assim que as guitarras
foram devolvidas ao descanso, as baquetas tombaram no chão e os amplificadores esfriados,
saímos todos inebriados, deleitados e combalidos de Witch.
MOURA é
provavelmente – a par de Cachemira – a minha banda favorita da vizinha Espanha
(das que estão ainda em actividade, pois se as já extintas entrarem nesta
equação, os Prisma Circus levam o troféu). E lidava com o bónus de os
ver ao vivo pela primeiríssima vez. Esses factores motivaram e nortearam a
minha determinada vontade de perfurar pela massa humana adentro e cravar os
punhos no gradeamento à frente do palco secundário. Reavivando crenças,
costumes e ritos ancestrais da velha Galícia, a performance deste criativo
e maturado colectivo localizado no extremo norte de Espanha foi orvalhada
e embruxada por um rico sortido sonoro de onde facilmente se apaladara um
sonhador, novelesco e trovador Folk de raiz tradicional, um bailante,
quimérico e deslumbrante Progressive Rock de traje medieval, um
druídico, colorido e caleidoscópico Psychedelic Rock de clima estival e
ainda um anestésico, absorvente e sidérico Krautrock de afago sensorial.
Conduzidos, incensados e seduzidos pelas envolventes narrativas que habitaram
todos os temas da actuação, fomos submersos no fumarento caldeirão de MOURA
onde fervera todo um revivalista Folclore trazido de tempos imemoriais,
caídos há muito em desuso. Com vista a revitalizar a preciosa herança popular
da Galícia anciã, MOURA desenterrara e principiara toda uma
transformadora, intrigante e embriagante profusão de mágicos rituais Wicca
que nos aprisionaram num hipnotismo mesmérico de espectral docilidade e
fantasmagoria enleante. Na erudita caligrafia musical de MOURA vive uma
purificante, minuciosa e cativante diversidade instrumental de onde sobressaem
os cerimoniais, populosos e lustrosos coros vocais – entoados na sua língua
nativa – de tonalidades desiguais, os ousados bailados das guitarras pagãs que
se embandeiram em majestosos Riffs e efervescem em ácidos solos de
tintura psicadélica, os esvoaçantes mugidos nasalados pelos virtuosos teclados,
os uivos ziguezagueantes de um principesco violino, as quentes reverberações de
um baixo protuberante e as estimulantes incursões de uma bateria habilidosa
aliada a uma percussão ritualista. Fora do palco estávamos todos reféns de um
encantamento que nos impedia de pestanejar. MOURA foi uma adorável
experiência de purificação sensorial que só pecou pela falta de tempo – pois os
titânicos Electric Wizard já batiam à porta – para colocarem a cereja no
topo do bolo: “Ronda das Mafarricas” (incrível versão cover do
nosso Zeca Afonso e o meu tema predilecto da banda).
Ressoadas e
perscrutadas as doze badaladas, todos acorreram à liturgia das liturgias. Os
todo-poderosos Electric Wizard subiam ao altar e fora dele os corações
galopavam num entusiasmo desenfreado. A banda-rainha do SonicBlast
motivava a maior enchente a as costuras do recinto eram postas à prova. E foi
debaixo de uma vibrante ovação que se ouviu o mote «Come my Fanatics» de
Jus Oborn. Fascinada, enegrecida e prontamente convertida em sua fiel
devota, a superpovoada plateia caia na ímpia tentação dos demoníacos sacerdotes
britânicos. De olhar semi-selado, boquiabertos e espírito embriagado,
ondeávamos os corpos na instintiva resposta à mastodôntica, espessa e trevosa
negrura vertida dos fumegantes amplificadores. Numa venerável expedição pela
sua respeitável discografia (ainda que com as investidas no seu inigualável ‘Witchcult
Today’ a motivarem do público os mais ruidosos clamores de entusiasmo),
a imperiosa banda – natural do condado inglês de Dorset – brindou-nos
com um fúnebre recital de luciférico, vultoso, nebuloso e hermético Doom-Metal
de suor psicotrópico, brilhantemente acompanhado por imersivos efeitos visuais,
cirurgicamente retirados de clássicas referências cinematográficas Série B,
onde as aventuras e desventuras de insubordinados gangues de motoqueiros e
rituais satânicos de nudez explicita, sacrifícios sangrentos e adoração pagã nos
impediam de afastar o olhar do grande ecrã. Vergastados por uma impiedosa,
fulminante e aparatosa bateria de pratos relampejantes e timbalões trovejantes,
embruxados por duas guitarras dominantes de majestosos, fogosos e encarvoados Riffs
de onde escapavam esvoaçantes, dilacerados e tortuosos solos, oprimidos por um
baixo massivo de reverberação musculada, inchada e violenta, e enlouquecidos por
vocais ecoantes, vampíricos e espaciais, abrimos os nossos corações ao lado
eclipsado da religiosidade. Electric Wizard ao vivo foi uma experiência
verdadeiramente esmagadora, e, sem surpresas, uma das mais apoteóticas desta
10ª edição do festival. Uma monolítica avalanche que nos atropelara e sepultara
nas abissais profundezas do nosso Cosmos interior. Uma inclemente, ardente e
vertiginosa submersão na mais opaca pretura sem regresso à tona garantido.
Os budistas germânicos My Sleeping Karma estavam de regresso a um festival que tão bem conhecem. Deste terceiro e derradeiro dia de SonicBlast, eram provavelmente a banda mais prezada pelos milhares de festivaleiros que esgotaram a bilheteira e fizeram por justificar esse estatuto com uma invejável forma em palco. Estes quatro druidas celebraram a ocasião com um meditativo, transformador, reparador e imaginativo Post-Rock de terapêutico aroma oriental – aliado a temperos de um arejado Space Rock e um mântrico Psychedelic Rock – que tombara as nossas pálpebras e nos mergulhara num perfeito estádio de meditação. A sua sonoridade incensada evolui de obscuros, pesados e fatídicos estados que nos travam a respiração e inundam o olhar de lágrimas, para preclaros, desanuviados e paradisíacos céus saturados de uma luzência esperançosa que nos devolve o sorriso e desperta para uma poderosa e contagiosa revolução consciencial. De chakras alinhados, alma massajada, zonas erógenas do cérebro inundadas, e em suspenso num etéreo estado de ofuscante deslumbramento espiritual, fomos sedados e embalados num místico, catártico e absorvente groove de estímulo perceptual que nos conduziu ao tão almejado nirvana. Da sombreada prostração à ensolarada libertação obedecemos a um guia espiritual que nos fora ofertado pelos My Sleeping Karma, cumprindo a dissolução do Ego, a transgressão física, pensamentos de calma, paz e pureza, e – assim – alcançando a verdade superior e a ulterior compreensão da vida. Gravitando numa fascinante simbiose instrumental – onde dialogam uma guitarra messiânica de ajardinados acordes desenhados a incessante beatitude e desarmante sensibilidade, um baixo pulsante de bafo quente, fluído e ondeante, uma bateria instigante de ritmos imersivos, criativos e estimulantes, e ainda um quimérico sintetizador que borrifa toda esta onírica atmosfera com uma colorida poeira estelar – a banda alemã instaurara na estrelada noite de Vila Praia de Âncora toda purificante hipnose de celebração hinduísta à qual ninguém se recusou comungar. Regressámos de My Sleeping Karma com um sentimento comum de revolução consciencial.
No dia
seguinte, domingo, regressei a casa. De olhar distante a sobrevoar o alcatrão da estrada,
percorrendo toda a quilometragem até ao coração da região transmontana, havia
tanto de mim que ficara em Vila Praia de Âncora. Este regresso ao/do SonicBlast
não poderia ter sido mais gratificante. Existe algo de verdadeiramente
místico por lá que, na hora da despedida, faz agigantar no peito de todos nós uma
urgente vontade de regressar. O SonicBlast é uma verdadeira ode à música, amizade e liberdade. Um lugar
onde cada um de nós pode ser ele mesmo, na sua genuína e descomplexada unicidade.
Ainda falta muito para os dias 10, 11 e 12 de Agosto de 2023?
1 comentário:
então e 1000moods?
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