sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Review: ⚡️ SonicBlast Fest 2022 ⚡️

Dois anos de penoso jejum motivado pela pandemia (algo ímpar no historial do festival), a alteração da sua morada de residência para a localidade vizinha de Vila Praia de Âncora, uma admirável ementa musical de esfregar repetidamente os olhos para conferir a sua autenticidade e o tão ansiado reencontro com tantos e tantos amigos feitos da incurável e insaciável paixão pela música que nos é transversal. Tudo isto contribuiu para que o ponteiro do meu entusiasmo dedicado à 10ª edição do SonicBlast estivesse há muito colado no zénite das rotações. E foi na culminância dessa inquietude que na manhã de quinta-feira – de depósito e mala do carro atestados – me fiz à estrada. Chegado ao destino, onde reluzia um tímido Sol de bafagem morna e vagueava uma fresca aragem de condimento oceânico, apressei-me a juntar a uns amigos numa casa em frente à praia onde iria pernoitar durante aqueles três dias. Num olhar mais demorado e indagador através da janela pude cimentar a noção de que aquela bonita vila costeira de Âncora estaria melhor preparada – quando em comparação com a pequena freguesia de Moledo – para receber e fazer crescer este festival que me é tão especial. E bastou mesmo uma passeata pela longa e movimentada marginal que serpenteia as delimitações do dourado areal da Praia da Duna do Caldeirão para que essa noção se convertesse em certeza. Incontáveis bares, restaurantes e alojamentos locais davam e recebiam vida. Testemunhava-se toda uma palpável simbiose entre os habitantes de Vila Praia de Âncora, os muitos turistas que ali faziam praia e os milhares de festivaleiros de múltiplas nacionalidades que preenchiam as movimentadas e ruidosas esplanadas. Tendo como farol sonoro as encorpadas ressonâncias provenientes do novo recinto do SonicBlast a compassar e magnetizar a minha apressada marcha, era hora de acorrer ao festival. Apesar dos noruegueses The Devil and the Almighty Blues estarem em palco a hastear bem alto o seu ostentoso, sedutor e imperioso Heavy Blues de encarvoada maquilhagem Proto-Doom, as muitas novidades no recinto reclamavam para si mesmas toda a minha atenção. E foram muitos os upgrades para esta edição comemorativa dos 10 anos de SonicBlast. Desde logo, a dilatação considerável do novo recinto face às originais de Moledo, onde os palcos principal e secundário se perfilavam lado a lado, passando pela muito bem arrumada e aprumada zona de restauração onde estava anexado um terceiro palco de menores dimensões, a diversidade de tendas alusivas à venda de música em formato físico, t-shirts e outros acessórios de moda, etc. Pela negativa apenas a ausência de sombras no recinto. Concluída a relaxada missão de reconhecimento no novo domicílio do SonicBlast, era tempo de confraternizar com os muitos rostos familiares, bem como com tantos outros que me eram estranhos, mas que me reconheciam através do El Coyote, que iam surgindo no meu caminho.



Dia 1 // King Buffalo

Vigiados de perto pelo Sol vibrante e com copos de cerveja baloiçante empunhados, arremessámos o olhar para o palco principal onde o tridente nova-iorquino King Buffalo se estreava em solo português e preparava para dar início a um imersivo e contemplativo hipnotismo. Embalados numa evolutiva e inescapável hipnose que se absorve num tantalizante, morfínico, xamânico e enfeitiçante Psychedelic Rock de paladar cósmico e dançante palpitação Krauty, sintonizado na mesma frequência de bandas como Papir e All Them Witches, e revolve num efervescente, inflamado, carregado e erodente Heavy Psych – encrostado por uma escaldante, intensa e crocante distorção Fuzzy – de sinuosas guinadas Progressivas à boa moda Tool’esca, todos os corpos ali presentes obedeceram à ondeante, fluída e pulsante reverberação de um baixo soberbamente groovy, uma guitarra celestial de magnetizantes, intoxicantes e obsessivos Riffs que se serpenteiam repetidamente numa escadaria em espiral, uma bateria tribalista de toque cintilante, preciso e galopante, e uma voz profética de pele robotizada, aveludada e sóbria. À aliciante boleia de King Buffalo, embarcámos numa nirvânica vertigem pelas profundezas abissais do oceano cósmico, locomovida a diferentes velocidades e orvalhada a climas contrastados. Um sempiterno ricochete entre a suavidade e a aspereza, a quietude e a fervura, a sanidade e a insanidade, a gravidade e a leveza.


Dia 1 // SLIFT

É justo começar por dizer que do primeiro dia de festival, os SLIFT colhiam para si os maiores anseios de uma plateia numerosa que se ia consolidando em frente ao palco principal, e assim que se ouviram e reconheceram os primeiros acordes de “Ummon” (tema que dá nome ao seu último álbum. E que álbum.) sentiu-se uma generalizada sensação de crescente euforia que nos preparava para desancorar os corpos e soltar os pescoços no iminente clímax logo ali ao virar da esquina. Com uma presença bombástica acima de palco e inflamados por um borbulhante, heterogéneo e fumegante cocktail sonoro de onde facilmente se apalada um envolvente, hipnótico, anestésico e fascinante Krautrock de pulsação CAN’ica, um viajante, entusiástico, exótico e provocante Space Rock de ressonâncias Hawkwind’eanas, e ainda um furioso, efervescente, escaldante e revoltoso Garage-Punk – de electricidade Heavy Psych – esporeado à boa moda dos californianos Fuzz, os SLIFT arrancaram para uma apoteótica performance que não deixara ninguém recostado à indiferença. A sua sonoridade flamejada pelas incandescentes fornalhas estelares que reluzem na medula do abissal negrume cósmico, tem a capacidade de nos prender, amortalhar e narcotizar numa edênica e encantadora dormência que nos inunda os sentidos, e desenraizar da gravidade terrestre, catapultando-nos numa alucinante, enlouquecedora e euforizante vertigem, driblando o abraço gravitacional de todos os astros suspensos no horizonte e resvalando nas costuras fronteiriças do espaço sideral. Uma mística, sónica e absorvente propulsão carburada por uma guitarra sulfurosa que se manifesta em vulcânicos, dominantes, intrigantes e messiânicos Riffs abrasados pela distorção urticante, de onde desaguam solos ecoantes, alucinógenos, ácidos e atordoantes, um murmurante baixo de linhas oscilantes, elásticas, magnéticas e dançantes, uma bateria dinâmica de rumorosa, intensa e aparatosa explosividade, um alienígena sintetizador, criador de uma adorável atmosfera SCI-FI, e ainda uma voz gritada que lidera com vistosidade toda esta evasão consciencial. No final o atordoamento sentido fora do palco foi geral.

Dia 2 // Green Lung

Este segundo dia de SonicBlast encerrava o lote de bandas que mais desejava experienciar, e a formação londrina Green Lung era uma delas. Assombrado por um enigmático, profano, melódico e ritualístico Occult Rock de feições góticas em erótica cumplicidade com um vigoroso, imponente, erodente e ostentoso Proto-Metal de musculatura setentista, e um intrigante, sinuoso, pomposo e enfeitiçante Heavy Prog de celebração ocultista, o colectivo sacerdotal britânico deu início à sua demoníaca liturgia de ornamentadas orações apontadas ao lado eclipsado da religiosidade. Comungando e combinando a trevosa bruxaria de Black Sabbath, a sedutora ardência de Boston, a hipnótica exuberância de Atomic Rooster e a majestosa elegância de Deep Purple, o quarteto conquistou toda uma entusiástica plateia com as suas luciférica perversidade e tóxica nebulosidade que nos dilataram as pupilas, empalideceram o semblante, sobreaqueceram o peito, e estremeceram, profanaram e anoiteceram o espírito. Vivia-se um inquebrantável clima de saturada fascinação à esmagadora boleia de uma liderante voz de pele avinagrada, melódica, vampírica e apimentada que fica a meio caminho entre um Ozzy Osbourne e um Ronnie James Dio, uma dominante guitarra que se manifesta em monolíticos, heréticos, tirânicos e esculturais Riffs de onde são centrifugados enlouquecedores vendavais de espalhafatosos, ziguezagueantes, berrantes e vertiginosos solos, um luxuoso teclado de pesadas, densas, tensas e perfumadas harmonias, um fibroso baixo reverberado a linhas quentes, obesas, coesas e magnetizantes, e uma pujante bateria atestada de testosterona que esporeia, vergasta e incendeia toda esta cavalgada infernal com altiva e expressiva explosividade. No final deste rito não foi nada fácil sacudir a magia negra que nos havia encarvoado e convertido em seus devotos peregrinos.


Dia 2 // El Perro

Liderados pelo talentoso multi-instrumentista norte-americano Parker Griggs (guitarrista e vocalista de Radio Moscow), os bem-dispostos El Perro subiram a palco com um refrescante, sumarento e revitalizante cocktail sonoro de onde sobressaem um dançante, lubrificado, torneado e provocante Blues Rock de contagiante balanço Boogie, um tropical, estival, colorido e açucarado Psychedelic Rock de sotaque latino, e ainda um ritmado, exótico, afrodisíaco e bronzeado Funk Rock de estirpe setentista. Bamboleado por um delicioso, bem-disposto e libidinoso groove de clima veraneio que sobreaqueceu, inquietou e embeveceu os muitos ouvintes que o vivenciavam com um inapagável brilho no olhar, o quinteto El Perro envaideceu-se num carnavalesco Samba onde desfilaram clássicas influências como Jimi Hendrix, Funkadelic, Santana e ZZ Top. A sua sonoridade picante, sensual e contagiante obrigou-nos a dançá-los – de forma detida e desinibida – do primeiro ao derradeiro tema. Transpirados, buliçosos e excitados pela esfuziante fogosidade que chamejou todo este concerto, fomos centrifugados à estonteante e caleidoscópica boleia de duas guitarras apimentadas que rugiam vulcânicos, serpenteantes e empolgantes Riffs de onde eram uivados e esvoaçados, venenosos, espaventosos e alucinados solos, um baixo baloiçante de linhas sinuosas, inchadas e ostentosas, uma bateria arrojada – em harmonioso companheirismo com uma festival e sensacional percussão de arrojada natureza tribal – de dinâmica, entusiástica e desembaraçada ritmicidade, e uma voz felina de pele abrasiva, áspera e urticante. El Perro foi um orgásmico bacanal de colorida efervescência e vivaz comoção, e, indubitavelmente, um dos mais memoráveis concertos por mim testemunhados durante todo o festival.


Dia 2 // Witch

Foi já com a noite a tingir os céus de Vila Praia de Âncora que os feiticeiros Witch entraram em palco. Na plateia os corpos iam-se perfilando ombro a ombro, de pequenos, mas resolutos passos que os aproximavam progressivamente do palco, olhares afogueados pelo imoderado contentamento de assistir ao vivo a uma das mais históricas e estimadas bandas da scene, e formando, assim, uma populosa moldura humana de entusiasmo à flor da pele. Intoxicados por um borbulhante caldeirão de esverdeada exalação e magmática erupção – onde é cozinhado e remexido um narcotizante, ácido, delirado e bruxuleante Heavy Psych de virulenta, dramática e pestilenta perversidade Proto-Doom’esca – todos nós rodopiámos a cabeça, revirámos os olhos e testemunhámos na primeira pessoa o abalo sísmico da febril adrenalina. Na génese desta poderosa feitiçaria que tomara conta de nós durante uma hora estão duas guitarras sisudas que se avolumam na ascensão de Riffs rugosos, funestos e montanhosos, e se endemoninham na centrifugação de solos trepidantes, venenosos e alucinantes, um baixo opressivo de linhas tesas, coesas e intimidantes, uma bateria intempestiva de galope possante, buliçoso e empolgante, e vocais azedados, enregelados e espectrais. Numa digressão pelos seus dois únicos álbuns lançados até então, os norte-americanos Witch guardaram todos os seus trunfos para a recta final com a inclusão de alguns dos mais populares temas provenientes do seu registo homónimo. Adivinhava-se um final triunfante, e assim foi com a irrepreensível execução da implacável “Seer”, fazendo rasgar as vestes da nossa sanidade mental e elevando-nos aos infernais píncaros da euforizante loucura. Foi um concerto do tamanho do carisma que os reveste, e assim que as guitarras foram devolvidas ao descanso, as baquetas tombaram no chão e os amplificadores esfriados, saímos todos inebriados, deleitados e combalidos de Witch.


Dia 2 // MOURA

MOURA é provavelmente – a par de Cachemira – a minha banda favorita da vizinha Espanha (das que estão ainda em actividade, pois se as já extintas entrarem nesta equação, os Prisma Circus levam o troféu). E lidava com o bónus de os ver ao vivo pela primeiríssima vez. Esses factores motivaram e nortearam a minha determinada vontade de perfurar pela massa humana adentro e cravar os punhos no gradeamento à frente do palco secundário. Reavivando crenças, costumes e ritos ancestrais da velha Galícia, a performance deste criativo e maturado colectivo localizado no extremo norte de Espanha foi orvalhada e embruxada por um rico sortido sonoro de onde facilmente se apaladara um sonhador, novelesco e trovador Folk de raiz tradicional, um bailante, quimérico e deslumbrante Progressive Rock de traje medieval, um druídico, colorido e caleidoscópico Psychedelic Rock de clima estival e ainda um anestésico, absorvente e sidérico Krautrock de afago sensorial. Conduzidos, incensados e seduzidos pelas envolventes narrativas que habitaram todos os temas da actuação, fomos submersos no fumarento caldeirão de MOURA onde fervera todo um revivalista Folclore trazido de tempos imemoriais, caídos há muito em desuso. Com vista a revitalizar a preciosa herança popular da Galícia anciã, MOURA desenterrara e principiara toda uma transformadora, intrigante e embriagante profusão de mágicos rituais Wicca que nos aprisionaram num hipnotismo mesmérico de espectral docilidade e fantasmagoria enleante. Na erudita caligrafia musical de MOURA vive uma purificante, minuciosa e cativante diversidade instrumental de onde sobressaem os cerimoniais, populosos e lustrosos coros vocais – entoados na sua língua nativa – de tonalidades desiguais, os ousados bailados das guitarras pagãs que se embandeiram em majestosos Riffs e efervescem em ácidos solos de tintura psicadélica, os esvoaçantes mugidos nasalados pelos virtuosos teclados, os uivos ziguezagueantes de um principesco violino, as quentes reverberações de um baixo protuberante e as estimulantes incursões de uma bateria habilidosa aliada a uma percussão ritualista. Fora do palco estávamos todos reféns de um encantamento que nos impedia de pestanejar. MOURA foi uma adorável experiência de purificação sensorial que só pecou pela falta de tempo – pois os titânicos Electric Wizard já batiam à porta – para colocarem a cereja no topo do bolo: “Ronda das Mafarricas” (incrível versão cover do nosso Zeca Afonso e o meu tema predilecto da banda).


Dia 2 // Electric Wizard

Ressoadas e perscrutadas as doze badaladas, todos acorreram à liturgia das liturgias. Os todo-poderosos Electric Wizard subiam ao altar e fora dele os corações galopavam num entusiasmo desenfreado. A banda-rainha do SonicBlast motivava a maior enchente a as costuras do recinto eram postas à prova. E foi debaixo de uma vibrante ovação que se ouviu o mote «Come my Fanatics» de Jus Oborn. Fascinada, enegrecida e prontamente convertida em sua fiel devota, a superpovoada plateia caia na ímpia tentação dos demoníacos sacerdotes britânicos. De olhar semi-selado, boquiabertos e espírito embriagado, ondeávamos os corpos na instintiva resposta à mastodôntica, espessa e trevosa negrura vertida dos fumegantes amplificadores. Numa venerável expedição pela sua respeitável discografia (ainda que com as investidas no seu inigualável ‘Witchcult Today’ a motivarem do público os mais ruidosos clamores de entusiasmo), a imperiosa banda – natural do condado inglês de Dorset – brindou-nos com um fúnebre recital de luciférico, vultoso, nebuloso e hermético Doom-Metal de suor psicotrópico, brilhantemente acompanhado por imersivos efeitos visuais, cirurgicamente retirados de clássicas referências cinematográficas Série B, onde as aventuras e desventuras de insubordinados gangues de motoqueiros e rituais satânicos de nudez explicita, sacrifícios sangrentos e adoração pagã nos impediam de afastar o olhar do grande ecrã. Vergastados por uma impiedosa, fulminante e aparatosa bateria de pratos relampejantes e timbalões trovejantes, embruxados por duas guitarras dominantes de majestosos, fogosos e encarvoados Riffs de onde escapavam esvoaçantes, dilacerados e tortuosos solos, oprimidos por um baixo massivo de reverberação musculada, inchada e violenta, e enlouquecidos por vocais ecoantes, vampíricos e espaciais, abrimos os nossos corações ao lado eclipsado da religiosidade. Electric Wizard ao vivo foi uma experiência verdadeiramente esmagadora, e, sem surpresas, uma das mais apoteóticas desta 10ª edição do festival. Uma monolítica avalanche que nos atropelara e sepultara nas abissais profundezas do nosso Cosmos interior. Uma inclemente, ardente e vertiginosa submersão na mais opaca pretura sem regresso à tona garantido.


Dia 3 // Deathchant

Com a tarefa de substituir o colectivo dinamarquês Mythic Sunship, que, infelizmente, – ou não fosse para mim uma das maiores atracções da presente edição do SonicBlast – havia cancelado a sua actuação devido a um dos seus integrantes ter contraído covid, os californianos Deathchant – para meu incontido regozijo, ou não os tivesse perdido na madrugada anterior – subiam ao palco secundário na tarde do derradeiro dia para executarem uma das performances mais irrepreensíveis do festival. Cruzando um musculoso, motorizado, destravado e oleoso Heavy Rock cadenciado a um dinâmico coice Skate Punk e sintonizado na mesma frequência de referências Thin Lizzy e Motörhead, com um imperioso, melódico, enigmático e umbroso Proto-Metal revolvido a efervescente psicadelismo, e ainda um chamejante, corrosivo, eruptivo e excruciante Grunge de febril fogosidade a fazer recordar The Melvins e Corrosion of Conformity, o impactante concerto destes quatro Hells Angels de instrumentos empunhados e locomovidos a alta octanagem estreitou os contrastes entre o peso e a leveza, a desaceleração e a aceleração, a ternura e a aspereza. De cabeça freneticamente rodopiante, maxilares cerrados, olhar incendiado e alma atestada de pura excitação, fomos agredidos, mastigados e sacudidos pela magmática, enfática e transpirada ferocidade de Deathchant à redentora, alucinante e enlouquecedora boleia de duas guitarras gémeas e predatórias que se alinhavam na edificação de Riffs rochosos, altivos, incisivos e volumosos, e desalinhavam na apressada condução de solos virtuosos, ziguezagueantes, electrizantes e gloriosos, um trovejante baixo pesadamente bafejado a linhas fibróticas, tensas, densas e hipnóticas, uma incansável bateria ciclónica de batida impetuosa, galopante, provocante e estrondosa, e ainda uma voz felina de rugidos denteados, viscerais, siderais e rouquenhos. Foram 45 minutos trilhados a alta rotação e climatizados a escaldante comoção. Punhos e cervejas ao alto.



Dia 3 // Mdou Moctar

Para o meio da tarde estava reservada uma das maiores surpresas, senão mesmo a maior, desta edição comemorativa dos 10 anos de SonicBlast. Directamente vindo dos desertos de Agadèz (a maior cidade do norte da República do Níger), o talentoso músico tuaregue Mdou Moctar – devidamente acompanhado pela sua banda – trouxe a Vila Praia de Âncora o tão característico Desert Blues de pele morena, textura arenosa e corpo serpenteante que é partilhado pelo seu compatriota Bombino e pelos seus vizinhos Tinariwen e Tamikrest. A turma africana – trajada de túnicas étnicas e turbantes a mumificar o rosto – não demorou a disseminar a sua expansiva sonoridade, e sem que déssemos por isso, estávamos todos compenetrados numa alegre, vibrante, contagiante e infatigável dança – transversal a todas as idades e a todos os espectros musicais ali presentes – impulsionada e norteada por uma guitarra verdadeiramente afrodisíaca de dedilhados aventurosos, magnéticos, exóticos e sinuosos, uma bateria tribal de passada provocante, inquietante e ritmada, um baixo bailante de pulsação ondeante, cálida e saltitante, e uma voz messiânica que, apesar de ser cantada num idioma que nos era estranho, todos a entoámos de forma desinibida e descomplexada. Vivia-se um festivo ambiente de transbordante harmonia. As pessoas sorriam entre si, os corpos – embalados na vertigem – entortavam-se num devocional bailado e os olhares cruzavam-se com genuína cumplicidade. Sentados acima de um tapete mágico sobrevoámos os róseos céus da velha Pérsia. Mdou Moctar foi uma experiência excessivamente contagiante, refrescante, paradisíaca e purificante que a todos deslumbrara e estacionara num autêntico oásis sensorial. O seu único defeito foi ter terminado.

Dia 3 // My Sleeping Karma

Os budistas germânicos My Sleeping Karma estavam de regresso a um festival que tão bem conhecem. Deste terceiro e derradeiro dia de SonicBlast, eram provavelmente a banda mais prezada pelos milhares de festivaleiros que esgotaram a bilheteira e fizeram por justificar esse estatuto com uma invejável forma em palco. Estes quatro druidas celebraram a ocasião com um meditativo, transformador, reparador e imaginativo Post-Rock de terapêutico aroma oriental – aliado a temperos de um arejado Space Rock e um mântrico Psychedelic Rock – que tombara as nossas pálpebras e nos mergulhara num perfeito estádio de meditação. A sua sonoridade incensada evolui de obscuros, pesados e fatídicos estados que nos travam a respiração e inundam o olhar de lágrimas, para preclaros, desanuviados e paradisíacos céus saturados de uma luzência esperançosa que nos devolve o sorriso e desperta para uma poderosa e contagiosa revolução consciencial. De chakras alinhados, alma massajada, zonas erógenas do cérebro inundadas, e em suspenso num etéreo estado de ofuscante deslumbramento espiritual, fomos sedados e embalados num místico, catártico e absorvente groove de estímulo perceptual que nos conduziu ao tão almejado nirvana. Da sombreada prostração à ensolarada libertação obedecemos a um guia espiritual que nos fora ofertado pelos My Sleeping Karma, cumprindo a dissolução do Ego, a transgressão física, pensamentos de calma, paz e pureza, e – assim – alcançando a verdade superior e a ulterior compreensão da vida. Gravitando numa fascinante simbiose instrumental – onde dialogam uma guitarra messiânica de ajardinados acordes desenhados a incessante beatitude e desarmante sensibilidade, um baixo pulsante de bafo quente, fluído e ondeante, uma bateria instigante de ritmos imersivos, criativos e estimulantes, e ainda um quimérico sintetizador que borrifa toda esta onírica atmosfera com uma colorida poeira estelar – a banda alemã instaurara na estrelada noite de Vila Praia de Âncora toda purificante hipnose de celebração hinduísta à qual ninguém se recusou comungar. Regressámos de My Sleeping Karma com um sentimento comum de revolução consciencial.


Dia 3 // Weedeater

Foi já com a Lua bem alta que o vulcânico power-trio Weedeater subiu a palco. Fora dele o forte odor a Cannabis intensificava e também os nossos corações rufavam de anseios. Anseios esses que não tardaram a ser abafados pelo intenso braseiro de vapor esverdeado – inflamado pela já histórica banda natural do estado americano da Carolina do Norte – que nos sobreaquecera e revolvera de indomesticável euforia. Enlameados pelas pesadas, paradas e lodacentas águas que inundam os brumosos pântanos de um viscoso, fumarento, bolorento e fogoso Sludge Metal de crocante, corrosiva e fervilhante distorção, dilatámos as narinas, cerrámos os maxilares, apoiámos as palmas das mãos nos joelhos e desaparafusámos as cabeças na instintiva resposta comportamental à pesada, tonificada e psicotrópica bafagem que era exalada do palco. Numa demolidora galopada a duas velocidades contrastadas – que tanto nos enterrava numa morfínica sedação, quanto agitava numa enérgica comoção – a corpulenta, dopada e bafienta sonoridade de Weedeater amotinara a maré humana. Na incandescência de uma guitarra herética que balanceia Riffs montanhosos, denteados e ventosos, no violento bafo de um insuflado baixo de reverberação carregada, obscura e carrancuda, na estrondosa detonação de uma tempestuosa bateria tiquetaqueada a batida altiva, forte e invasiva, e nos coléricos rugidos de uma voz escarpada, rugosa e queimante – regada e temperada a Jack Daniels –, a irreverente banda sulista arrancara para uma alucinante cavalgada, onde os incontornáveis temas do clássico ‘God Luck and Good Speed’ saciaram toda uma arrebatada plateia, desassossegada por experienciar algo assim. Weedeater foi – aos meus ouvidos – um dos grandes concertos do festival.

No dia seguinte, domingo, regressei a casa. De olhar distante a sobrevoar o alcatrão da estrada, percorrendo toda a quilometragem até ao coração da região transmontana, havia tanto de mim que ficara em Vila Praia de Âncora. Este regresso ao/do SonicBlast não poderia ter sido mais gratificante. Existe algo de verdadeiramente místico por lá que, na hora da despedida, faz agigantar no peito de todos nós uma urgente vontade de regressar. O SonicBlast é uma verdadeira ode à música, amizade e liberdade. Um lugar onde cada um de nós pode ser ele mesmo, na sua genuína e descomplexada unicidade. Ainda falta muito para os dias 10, 11 e 12 de Agosto de 2023?

📸 Tiago Esteves // El Coyote

1 comentário:

Anónimo disse...

então e 1000moods?