Depois de em
2018 ter visitado pela 1ª vez o festival madrileno Kristonfest (crónica aqui)
– onde subiram a palco os britânicos Conan, os norte-americanos Elder,
High On Fire e Monster Magnet, e ainda os nipónicos Church Of
Misery – 2023 foi o ano do meu regresso. Para comemorar a décima edição do
festival, a organização do evento preparou uma chamativa ementa sonora a ser
servida na Sala La Paqui, onde figuraram os espanhóis Rosy Finch,
os franceses Mars Red Sky, os norte-americanos The Obsessed e
ainda os suecos Graveyard.
Com a
responsabilidade de substituir os Inter Arma (que haviam cancelado a sua
aparição no festival) a banda caseira – natural da cidade sulista de Alicante –
Rosy Finch subiu a palco de olhos postos numa plateia ainda pouco
compacta mas que foi aumentando progressivamente de dimensão logo assim que os
amplificadores foram ligados e os primeiros acordes ecoados pelo interior do edifício.
Este tridente ofensivo que detona um fervilhante, agressivo, bombástico e pujante
Sludge Metal – distorcido por um caótico, estrondoso e belicoso Noise
e enrijecido por um fogoso, gorduroso e fibrótico Grunge Rock – arrancou
numa turbulenta cavalgada, esporeada a alucinante velocidade, mas que foi parcialmente
prejudicada pela imperfeita qualidade técnica do som que esteve demasiado
estridente e cru. Ainda assim, isso não impediu a crescente audiência de
sacudir as cabeças em resposta a uma vulcânica guitarra de riffs escaldantes, inflamados
e crepitantes, um baixo possante de linhas coesas, tensas e densas, uma espalhafatosa
bateria pontapeada a um ritmo frenético e enérgico, e aos raivosos vocais
vociferados a infernal corrosão.
Seguia-se o conhecido
power-trio francês Mars Red Sky e os já muitos corpos ali presentes na
plateia reaproximavam-se do palco. E foi já com a Sala La Paqui muito
próxima da lotação máxima que todos embarcámos numa narcótica odisseia até à empoeirada
atmosfera do planeta vermelho, tendo como principal combustível um letárgico, pesado,
ácido e hipnótico Heavy Psych com momentâneas passagens por um pantanoso,
morfínico, tóxico e umbroso Psychedelic Doom. Amortalhados numa atmosfera
entorpecida e fumacenta, baloiçámos pesadamente os nossos corpos embriagados à absorvente
boleia de uma guitarra lisérgica que se avolumava em montanhosos, pausados e efervescentes
riffs e viajava em solos siderais, leves e espectrais, um baixo rosnante de
bafagem carregada, polposa e musculada, uma bateria intensa de batida seca, forte
e explosiva, e uma voz aguda, frágil e penetrante de timbre ecoante. Saltitando
pela sua discografia, a banda sediada na cidade francesa de Bordéus teve
no seu hino “Strong Reflection” o previsível clímax da sua imersiva actuação,
e foi debaixo de uma ruidosa ovação que os Mars Red Sky se despediram de
Madrid.
Foi de punhos
e garrafas de cerveja ao alto, e barulhentos clamores condimentados a imoderado
entusiasmo que brindámos a chegada da histórica banda de Doom Metal (um
dos bastiões do género), recém-remodelada para quarteto, e liderada pelo
lendário e carismático Wino com o seu longo cabelo grisalho, velho
colete desabotoado e olhar intimidante. Deles esperava muito e tudo eles me
deram. Aos primeiros acordes do tema inaugural ficou logo a pairar a forte
convicção generalizada de que The Obsessed ao vivo iria ser uma experiência
verdadeiramente demolidora. Munidos de um combativo, serpenteante, enleante e
altivo Doom Metal de raiz tradicional, estes ameaçadores motards de
instrumentos empunhados arrancaram para uma performance intensamente selvática que
não deixara ninguém indiferente. Fiéis discípulos dos seus gloriosos,
epidémicos, despóticos e poderosos Riffs, soltámos as cabeças em enlouquecedores rodopios e
desancorámos os nossos corpos da lisergia em nós deixada pela banda anterior.
Estávamos todos derrotados perante a força bruta impiedosamente exercida pelo
quarteto natural de Maryland. The Obsessed foi uma trevosa e mastodôntica avalanche que nos atropelara e soterrara sem qualquer misericórdia. Num equilíbrio
perfeito entre temas clássicos dos 90’s como por exemplo “Streetside”, “Tombstone
Highway” e “Brother Blue Steel”, e outros de roupagem contemporânea como
“Sodden Jackal”, “Punk Crusher” e “Sacred” (retirados do
seu último álbum de estúdio), a banda norte-americana foi um autêntico rolo
compressor que tudo assolara e conquistara à sua volta. Na composição desta enfeitiçante
negrura estiveram duas guitarras assassinas que se agigantavam na ascensão de
riffs flexuosos, carnudos, sisudos e imperiosos, e esvoaçavam na condução de solos
ziguezagueantes, fugidios, escorregadios e estonteantes, um robusto baixo de
monolítica, sombreada, rija e granítica reverberação, uma incisiva bateria
metralhada e bombardeada a velocidades contrastadas, e uma voz liderante de
pele sóbria e entoação intrigante. Foi um concerto de dimensão titânica e
validade vitalícia com um final verdadeiramente apoteótico, onde “Lost Sun
Dance” (tema originário do portentoso álbum de estreia de Spirit Caravan,
um outro velho projecto de Wino) levou toda a plateia a morder os lábios.
Os
escandinavos Graveyard nem precisaram de começar a tocar para que a esgotada
Sala La Paqui eclodisse num saturado e incontrolado êxtase que nos sobreaqueceu
o espírito com o acumular dos temas que iam reproduzindo de forma irrepreensivelmente
erótica acima de palco. A populosa plateia estava ao rubro. Os corpos embatiam
entre si, os olhares cruzavam-se e os sorrisos encontravam-se. Enternecidos e
maravilhados com as mélicas baladas, atiçados e euforizados com as ardentes
galopadas, testemunhámos, inteiramente fascinados e de ouvidos salivantes, o
concerto de uma vida. Atrelados a um libidinoso, quente, picante e lustroso Hard
Rock de tonalidade clássica onde se envaidece um charmoso, elegante, apaixonante
e majestoso Blues Rock de ares aristocráticos, os imensamente talentosos
Graveyard percorreram os seus últimos quatro álbuns (com principal
enfoque no ‘Hisingen Blues’ de 2011 e no ‘Peace’ de 2018), deixando
esquecido – com muita pena minha, já que se trata do meu registo favorito da
banda – o seu impecável álbum de estreia. Temas como “Hisingen Blues”, “No
Good, Mr. Holden”, “Cold Love”, “Uncomfortably Numb”, “Buying
Truth (Tack & Förlåt)”, “Please Don't”, “It Ain't Over Yet “,
“Slow Motion Countdown” e o triunfal “Ain't Fit to Live Here” a
finalizar o encore, causaram toda uma pirotécnica e efervescente combustão de puro
prazer num público completamente inebriado, deslumbrado e conquistado que
entoava a plenos pulmões as letras de todos os temas dos suecos. Todos nós
dançávamos ao provocante som de duas guitarras afrodisíacas que se entrelaçavam
em acordes meticulosos, romanescos e pomposos, e se desencontravam com a
explosão de trepidantes, giratórios e delirantes solos, um baixo dançante de pulsação
estética, magnética e ondeante, uma bateria acrobática e expressiva de tambores
galopantes e pratos flamejantes, e ainda dos vocais fragosos, roucos e melodiosos
de queimantes rugidos felinos que iam repartindo o protagonismo por detrás do
microfone com a voz límpida, sedosa e adocicada do baixista. Graveyard
brindaram todos os presentes com uma entrega total. Uma performance verdadeiramente preciosa e estratosférica, que resvalou as costuras da perfeição, e que decerto nenhum dos
presentes jamais irá esquecer.
Esta décima edição do Kristonfest foi memorável. Dela trouxe dois
concertos de uma vida e o forte desejo de regressar a este festival madrileno
no próximo ano. Obrigado ao Gorka pelo convite. Foi um prazer estar
associado a este evento na condição de parceiro media.
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