Desde a edição de estreia
que o Reverence Valada representa um
festival transgeracional onde se testemunha o cruzamento de diversas correntes
artísticas. Com apenas três anos de existência (repartidos em três edições), este
paraíso musical à beira Tejo plantado hasteara a sua reputação a uma escala
europeia (fenómeno de que raros festivais da mesma idade se podem orgulhar) e
tem merecido a minha assídua presença desde a primeira edição. Motivado pela
ambiência edénica do Reverence Valada
aliada à conjugação da qualidade e quantidade musical que este encerra, todos
os últimos verões ergo a mochila aos ombros, empunho firmemente o volante e
ancoro o meu olhar incendiado de satisfação no asfalto que me conduz até à
freguesia ribatejana de Valada (Cartaxo, Santarém). Depois de se passearem por
lá bandas como Sleepy Sun, Red Fang, Graveyard, Electric Wizard,
Naam, Bardo Pond, Spindrift, Hawkwind (edição de 2014), Electric Moon, Samsara Blues Experiment, Amon
Düül II, Blown Out, Black Rainbows, Ufomammut,
Stoned Jesus e Sleep (edição de 2015), a presente edição de 2016 contava com nomes
como Blaak Heat, Dead Meadow, Yawning Man, Papir & Dr.
Space, Ozric Tentacles, Øresund Space Collective, Papir, Steak, Mars Red Sky, Nik Turner e With The Dead. Confesso que os Yawning Man, Dead Meadow e Papir vestiam
o papel dos mais influentes detentores da grande expectativa que me inquietara
durante o pós-festival. Cheguei a Valada depois de 4h de olhar desmaiado sobre
o negro e fervilhante alcatrão e debaixo de um sol vigilante e bafejante.
Apesar da fadiga, tudo em mim me obrigava a procurar uma convidativa sombra no
já muito populoso Parque de Merendas de Valada e atracar a tenda. Uma
revitalizante brisa serpenteava-se por entre as árvores do Parque e traziam
consigo não só o canto dos pássaros, mas o vivificante tumulto da satisfação
sentida e exteriorizada pelos muitos festivaleiros que ali coabitavam em plena
harmonia. No recinto morava a novidade em cada esquina e nada escapava ao
elogio. Desde a decoração estilo industrial do pórtico de entrada que engolia
os festivaleiros, passando pela merecida deslocação da feira (comércio de todo o tipo de artigos) para
um espaço de plena visibilidade, o uso ecológico de um copo único, a radical
metamorfose dos três palcos (envolvendo a designação, posicionamento e aparência),
até à desejada abundância de comida no recinto. Senti-me estrangeiro num espaço
que julgava ser-me familiar e isso revelou-se uma agradável sensação.
Papir
& Dr. Space
Depois de digerido o
lamentável cancelamento de Zone Six
– que prometia igualar a extasiante atmosfera vivida em Electric Moon no Reverence
Valada ’15 (review aqui) –
a organização do festival encontrou em Dr.
Space (líder dos Øresund
Space Collective) o ingrediente ideal para suprir a ausência do power-trio germânico que se vestiria de Electric Moon e encontraria em palco
com Papir dando lugar ao fenómeno The Papermoon Sessions. A plateia não
pôde experienciar o resultado dessa mistura entre Electric Moon e Papir,
mas vivenciou uma verdadeira hipnose promovida pelo delirante Kraut N’ Psych Rock do tridente
dinamarquês em deslumbrante consonância com o sidérico Space Rock de Dr. Space.
Estes quatro músicos arrancaram para uma performance da qual poucos se
esquecerão de a recordar. Toda a plateia pendulava de olhar semicerrado e
lucidez embriagada enquanto pisava o aveludado manto desértico de papir e cabeceava os mais longínquos
astros de Dr. Space. Estava
instaurada uma poderosa comoção de prazer nutrida pela envolvente jam que se desenvolvia acima do palco.
Uma maravilhosa odisseia espiritual pelas distensíveis e dilatadas artérias da
alma que nos afunilam de encontro aos braços do transe. No final do concerto
foi difícil despertar de toda aquela intensa e profunda narcose que nos elevara
tão para lá dos nossos corpos inanimados. Papir
& Dr. Space foi mesmo um dos concertos mais verticais do Reverence Valada.
Yawning
Man
Em 2011 estive em Basileia (na
Suíça) a assistir ao vivo a Kyuss Lives!
(review aqui) e no decorrer
desse irrepreensível concerto – que levarei comigo pela vida fora – segredei a
mim mesmo que apenas um concerto de Yawning
Man teria em mim um peso equivalente ao de Kuyss (tal era – e é! – o fascínio sentido pelas duas históricas
formações). Portanto poder vê-los ao vivo representava a concretização de um
dos meus sonhos musicais mais idosos e ambiciosos. Assim que os Yawning Man subiram ao palco senti a
inabalável convicção de que estaria prestes a vivenciar um dos concertos mais
estarrecedores da minha vida. E assim foi. O seu característico Psych Rock de ares desérticos aliado a
um lisérgico Surf Rock resgatado dos
60’s estabeleceu nos nossos peitos um verdadeiro oásis que nos manteve
imortalizados a um estádio etéreo e ataráxico do primeiro último tema. O
deserto de Mojave florescia em nós e a nossa alma bronzeava ao som tropical da
banda norte-americana. Inalar toda aquela paradisíaca fragância sonora
desprendida por uma guitarra xamânica de adoráveis e embriagantes dedilhados, um baixo
pulsante de linhas robustas e dançantes, e uma bateria tribalista de hipnóticas
galopadas esculpia um sorriso nos nossos rostos, adormecia o nosso olhar e
massajava o nosso cerebelo. Yawning Man
foi verdadeiramente mágico. Uma perfeita ode à inércia e bem-estar que nos
mitigou e encantou com tremenda facilidade.
Dead Meadow
É justo começar por dizer
que – para mim – Dead Meadow foi
muito provavelmente ‘O’ concerto da presente edição do Reverence Valada. Depois de os ter testemunhado pela primeira vez na
cidade do Porto em 2011 – num concerto nebuloso - foi com enorme contentamento que
repetira esta inalação esverdeada de efeitos depressores e lenitivos. O power-trio natural de Washington, D.C.
(EUA) trouxe consigo o lado outonal do Psych
Rock e depressa transformou a nossa alma num nebuloso, viscoso e lamacento pântano.
A sua sonoridade desmesuradamente morfínica e hipnótica desaguava em nós,
desmaiando as nossas pálpebras e fazendo descair o nosso semblante sobre o
peito. Vivia-se um ambiente de intensa e perdurável narcose. Dead Meadow amortalharam toda a plateia
num poderoso abraço psicotrópico que nos adornou do primeiro ao último tema. A
guitarra lisérgica de riffs plangentes
e solos cáusticos conduzia o nosso corpo numa dança detida e pesada, o baixo
orgânico e deliciosamente ritmado robustecia toda esta poderosa letargia, a
bateria de passada firme e constante tiquetaqueava com emotividade toda esta pesarosa
narrativa, e a voz frígida, melancólica e fecundante emprestava-nos alguma lucidez
neste perfeito sonho acordado. Foi demasiado fácil deixarmo-nos adormecer no
seio de Dead Meadow e vivenciar um forte
estado de doce sedação. Podia sentir-se na plateia uma ambiência epicurista generalizada
que a acariciava e embalsamava. Foi uma performance verdadeiramente extasiante
que nos respirou e embaciou a consciência, amordaçou a euforia e nos fez cair
num interminável desmaio de prazer. No final do concerto foi difícil aceitar
que o mesmo já havia terminado e que a dormência começava então a dissipar-se. Dead Meadow foi um autêntico soporífero
via auditivo que nos dominara e anestesiara com veemência. Um dos mais
singulares concertos da minha vida.
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